Lágrimas de Vidro

Para entender...

Há alguns dias tive um sonho que quase não lembro. É um daqueles sonhos intensos, que só percebemos ser um sonho quando de repente o olho abre e se cai no mundo real. É estranho, porque mesmo sem lembrar detalhes, lembro bem daquela sensação de ter que abandonar alguém. No sonho, eu chorei, e foi uma mistura de angústia com alívio; tristeza sendo jogada para fora. É uma pequena alusão a um breve pensamento que tive, invejando os mangás. Neles, o riso, o choro e as lágrimas saem tão fácil, de um quadrinho para o outro.

Junto a isso, existe uma música que amo, chamada “Jigsaw Falling Into Place”, do Radiohead. É a minha música preferida de todas que conheço, e fala basicamente, de um momento curto, porém intenso, onde de repente tudo faz sentido – o quebra-cabeça se encaixa, como diz o nome da música. Escutava sozinho essa música, quando tudo se encaixou e montei a história abaixo praticamente inteira em menos de um segundo.

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- Eu não quero ir. – murmurei.

Por mais que a poucos metros de minhas costas esteja um trem para Londres me esperando, onde vou fazer dezenas de novos amigos, onde vou jogar num time de futebol, onde vou morar por alguns anos, sinto apenas tristeza.

Eu olho para ela. Com lágrimas nos olhos, está mais linda do que nunca. Seus pequenos olhos verdes estão apertados, fitando o chão. Parece que contrai alguns músculos da face, tentando evitar uma jorrada de lágrimas. E sei que tenho o poder de fazer com que caia em prantos a qualquer momento.

- Eu realmente não quero ir. – sussurrei. Como já esperava, minhas palavras foram o catalisador de um choro desesperado e histérico. Ela me abraçou com uma força que eu não sabia que tinha. Devolvi o abraço, tentando controlar meu próprio choro. Sei que é inevitável – assim que a porta dupla se fechar, a angústia vai sair.

É difícil pensar em outra coisa; as pessoas passam apressadas por todos os lados, mas parece que um circulo mágico de dois metros de raio se formou, e o mundo se resume a esse espaço.

Ela luta contra os soluços frenéticos, com a respiração falha. Gentilmente tento afrouxar o abraço, sem sucesso.

- Alice... – eu chamo seu nome. Não é fácil pronunciá-lo em voz alta, vendo que pelos próximos anos, só poderei escutá-lo dessa forma – por meus próprios murmúrios.

Minha vontade de chorar aumenta gradativamente a cada segundo. Mas o choro simplesmente não sai. Está lá dentro, atrás de meus olhos, arranhando. Mas insiste em ficar.

Alice relaxa os braços. Eu dou um passinho para trás e me abaixo, de joelhos, como se estivesse prestes a pedi-la em casamento. Tento encontrar seus olhos, mas estão fechados, escondidos atrás da fina cortina de cabelo ruivo.

Pela primeira vez, analiso como ela está. Levemente curvada, cabeça baixa, como uma criança chorando enquanto leva sermão por ter feito algo errado.

De repente ela levanta o olhar, pela primeira vez. Aquele verde esmeralda penetra em meus escuros olhos castanhos. Um pouco de vermelho cerca o verde claro. Mais uma vez a boca rosada está se contraindo, lutando.

Eu estendo a mão. Ela aceita o gesto, mesmo sem saber o que significa. O toque delicado de seus dedos se entrosando nos meus provoca uma revolta atrás dos olhos. Por um momento imagino a sensação de ficar anos sem esse toque. Imagino um vidro se formando entre minha mão e a dela.

Devaneando, nem percebo que Alice quebrou meu vidro imaginário, e agora está com os lábios colados nos meus. Os cacos deslizam por nossas peles como água, e por um momento, a tristeza vai embora.

Demorou a devolver minha boca. Achei que nunca a teria de volta.

Uma voz quase automática recita o horário e destino do trem às minhas costas, deixando bem claro que este partirá em seguida.

Ela envolveu meu rosto com as mãos, me segurando com força no beijo.

Levantei e entrei no trem. Talvez tenha me demorado, deixado mais um selinho, um beijinho na testa, mas não lembro. Mas não virei as costas para ela, para visualizá-la até o último momento. Com os pés já dentro do veículo, observei aquela que um dia fora apenas uma linda garota ruiva de olhos verdes que chamou minha atenção ao cruzar meu caminho. Muita coisa aconteceu. Hoje, sentada no chão, chorando, lembro de quando não a conhecia, e como ela sempre parecia estar demonstrando algo. O que estariam pensando as pessoas que passam e são meras observadoras, sem ter a mínima noção do que estava acontecendo?

Escuto o barulho seco da porta dupla se encaixando a frente de meus olhos.

Um alívio vem subindo dos pés a cabeça, e chegando naquela parte atrás dos olhos, empurra as lágrimas para fora. Elas saem deslizando pelas bochechas e caem no chão, levando consigo toda minha angústia.

Cada lágrima me lembra de momentos com ela; a primeira conversa, o primeiro beijinho no rosto, o primeiro telefonema, a primeira vez que ela tomou meus lábios para si, a primeira vez que dissemos “eu te amo”.

Com um pequeno esforço, olhei mais uma vez para fora, pelo vidro embaçado e arranhado.

Sentada ainda, ela sorria.

E sorri de volta, mesmo sem saber se me via.

Jack Lopes
Enviado por Jack Lopes em 21/04/2009
Reeditado em 02/12/2010
Código do texto: T1551390
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