A Bicicleta Clérice.
A Bicicleta Clérice
Lineu era aposentado. Morava com uma irmã viúva. Trabalhara no cais do porto, carregando sacos para o porão dos navios. Ultimamente se sentia cansado. Sua velhice transformava num inverno perene o que já fora belo verão. Poucas coisas o agradavam. Era tenso, nervoso, impaciente. Não levava desaforo para casa. Circulando por uma ciclovia foi derrubado por um mulatinho, a cruzar sua frente, distraído. Do chão quis matar o imprevidente:
___ Macaco dos diabos, imprestável, olha por onde anda, infeliz! Essa raça...
Não votara no presidente Lula. Conservador, fugia da estrela vermelha do PT. Tinha saudade do regime militar. Época que não aparecia tanta sujeira. Ignorava as atrocidades praticadas pelo poder dos generais. Era favorável à pena de morte diante do banditismo que grassava por aí. Pior que os foras da lei só um vizinho corintiano que morava no mesmo prédio que ele. Quando o time da marginal se dava bem, o bastardo soltava fogos, berrava pela janela: é o Coringão, o meu Coringão! Evitavam se cruzarem.
Lineu tinha uma paixão: a bicicleta Clérice. O gambá corintiano cobiçava-a de esguelha, sabia disso... Apesar de seu modelo ser masculino Lineu a tratava como moça de família. Aros, raios, guidão, quadro, etc, costumava trazer tudo nos trinques. Ela em troca o carregava para longe sem reclamar. Rendia o máximo para satisfazê-lo. Não se imaginava viver sem ela. Não mentia não, naquele período de climatério por que passava, chegava a bater umas e no auge repetia: Clérice, Clérice!
Lineu permanecia solteiro. Quando mais jovem gostava de freqüentar um bordel, no centro da cidade, onde se aliviava. Foi esperando uma das putas para atendê-lo, no quarto, que viu Clérice encostada num canto meio baqueada. Ele apreciava restaurar peças antigas.
___ Demorei muito, gostosão? perguntou a meretriz. O movimento tá de lascá, hoje! A peãozada recebeu e veio toda, cheia de tesão! Mas a mãinha já tá aqui limpinha... Tira essa roupa que vô fazê esse pintão mole endurecê...
E assim quando ela se demorava ele ficava de falação com a bicicleta. Requisitava a mesma vagabunda para ocupar o mesmo quarto. Passava a mão no veículo todo empoeirado. Descobriu seu nome escrito no guidão: Clérice.
___ Vou te tirar deste antro com cheiro de sexo e mofo, minha princesa! Duvidas?
___ Com quem tás falando, Lineu? perguntou a prostituta, entrando no cômodo.
___ Com ninguém, com ninguém! Eu só cantarolava te esperando...
Depois de satisfazer-se na mulher, indagou o que fazia aquela bicicleta ali? Ela contou-lhe que tinha prestado favores a três guris. Não possuíam dinheiro para pagar e deram o trambolho em troca.
___Às vezes a gente faz como índio, aceita galinha, porco, alimento... Essa aí só ocupa lugar...
___ Sabes andar de bicicleta? perguntou Lineu.
___ Eu não! Quando criança tomei uns tombos e desisti de aprender...
___ Por que não te desfazes dela?
___ E eu já não tentei! Mas quem vai querê isso todo emperrado?
___ Dá ela pra mim? pediu Lineu.
___ Se quiseres podes levar! disse a rameira admirada.
Foi com grande emoção que Lineu a retirou dali. Passou a não freqüentar mais o lupanar. Dedicava suas horas vagas para repará-la... E por vinte anos estavam juntos. Quando a usava em dia chuvoso, a secava e lubrificava com dedicação. Guardava-a em seu próprio quarto. Estendia um lençol sobre ela, protegendo-a da umidade e poeira.
Um dia, indo a uma lotérica, deixou-a por instantes, estacionada. Sua atitude foi fatal. Um malandro surrupiou-a. Lineu correu atrás do pivete sem alcançá-lo. Retornou para casa, arrasado. Antes fizera um BO, no distrito mais próximo, detalhando todas as suas características. Não se conformava. Os dias de separação transcorreram angustiantes. Perdeu até o apetite. A irmã, preocupada com sua saúde, reclamava:
___ Pára com isso meu irmão! É só uma bicicleta! Se fosse um carro, um cachorro... Vais ficar doente se não te alimentares!
___ Ela é tão importante quanto o ar que respiro... Mi deixa...
___ Eu hein! Deves procurar um psiquiatra! Isso não é normal! observou a irmã.
Clérice era sua parceira há vinte anos. Envelhecera cuidando dela. Precisava encontrá-la de qualquer modo. Passou a buscá-la em ferro velho, desmanches, pontos clandestinos. Um companheiro dos tempos de cais, sabendo de seu drama, cantou-lhe a bola:
___ Dá um “chego” na Feira do Rolo de domingo da Náutica, velho! A bichinha pode tá lá!
A Náutica ficava na periferia da cidade. Lá se encontrava produto de roubos em revenda. Lineu não pestanejou. Encontrou muitas bicicletas. Exposta num praticável, em destaque, reconheceu Clérice. Faltou-lhe o ar nos pulmões. Parecia que ia desmaiar. Pessoas rodeavam-na com interesse. Pediu para um desconhecido perguntar o preço. Não conseguia falar tal a emoção. Daria uma boa gorjeta para o intermediário. A pobrezinha seria vendida por R$ 150,00. Lineu resolveu apelar para a polícia que fazia ronda pelo local. Apreensivo, notou que alguém a adquirira. O novo proprietário tentou removê-la. Lineu interceptou-o, grudando em Clérice.
___ Isto me pertence! Foi roubada por um pivete faz quinze dias...
___ Cai fora mané, acabei de comprar a magrela!
Um policial interveio. Lineu mostrou o BO. No cilim, do lado interno, desenhara um coração com os nomes: Lineu e Clérice. Constatado o verdadeiro dono, Clérice foi removida para o pátio de veículos para os trâmites legais. Lineu devia buscá-la no dia seguinte. Seu calvário ainda não terminara. Não conseguiu conciliar o sono. Por coincidência, assistindo à sessão Corujão na TV, passava o filme Ladrões de Bicicleta, de Vittorio de Sica...
Lineu nunca mais saiu com Clérice, por precaução. Um câncer de próstata levou-o desta vida. Suas últimas palavras foram:
___ Ah, minha doce Clérice, vou ter que te deixar!
A irmã, inconvenientemente, vendeu Clérice para o vizinho corintiano.
Pablo Ribeiro
Vídeo no You Tube: luisalbertodossr
Do livro: Baixada Erótica Ou Não!