Um chá com Gisela Grabe
Edson Gonçalves Ferreira
Enxugou o rosto com as costas das mãos. Ajeitou os cabelos finos e lisos na nuca e abriu a janela. Lá fora, arrebentava-se já um sol vermelho na alvorada friorenta da manhã. O Sol parecia uma noiva ruborizada visto naquela manha, da beirada do rio, envolvo pelo manto de neblina. O mataréu verdio e molhado cheirava esperança e Gisela olhou-o, demoradamente, perdida em...
Ela corria... O bombardeio continuava e fora preciso deitar-se no chão. Abraçou a terra fria de neve como uma amante, em desespero, abraça o amado. A cortina de fogo caía de todos os lados. Somente ouvia-se os zumbidos tão característicos do ataue e a sirene de alerta. Via-se o fogo zumbindo e as vozes dos soldados alemães caçando os fugitivos.
_ Ah - suspirou a "alemoa", como diziam seus vizinhos brasileiros
depois -- como fora bom ter vindo para a América e, precisamente, para Divinópolis, Brasil. E o sol, agora, em plena manhã, fazia com que ela retornase aos campos distantes. Virou-se e dirigiu-se à vitrola. Colocou as cantigas de Malher. Trouxe a bandeja de chá. Olhou o rapaz Edson bem nos olhos, dizendo tudo sem palavras e, nos primeiros acordes da música, voltou para a Alemanha.
O campo estava verdio em volta de Berlim. Ela corria com um garoto nos braços e dizia: _ Já estamos chegando, viu Peter. Mammy adora você. Aquém, os aviões de guerra voltavam. Ela com o filho corriam. As pernas trôpegas de cansaço eram dominada por uma vontade férrea. Era a caça humana e a raposa com seu filhote fugiam. Via-se a ameaça e a morte rondando...
Enquanto ela contava, mais com os olhos que com a boca, a canção crescia e falva o quanto o seu coração doía de tristeza e saudade. A voz do soprano alteiava-se e se modulava qual a do trinado de um pássaro liberto. Lá fora, a aurora tropical se moduva no poema de prata daas neblinas, enquanto Gisela me olhava num quê de tristeza e doçura.
Era noite. Lembrou-se ela. Peter acordava e chorava com seus seis anos já sofridos. O barulho dos aviões volta feroz e se confundia com o das metralhadoras. Qualquer hora -- pensava ela --
podem bater na porta. Eles tinham se refugiado num abrigo. O menino chorava de fome. Gisela mistura passado e presente, mas sua lucidez e cultura e humanismo me comoviam. Ela não pensa e dá tudo o que tinha para seu sustento. O desepero de viver é bem maior que o de morrer.
Enquanto nos servimos de mais uma xícara de chá, volta o sopano num agudo melancólico, dizendo que sua dor é tamanha que machuca o coração. As lágrimas descem do rosto de Gisela e do meu.
A sua dor virava a minha dor. Ela e seu olhar se perdem e ela se lembra da libertação. Ela, na proa de um navio, contemplava o marido e a criança e volvia o seu olhar para o mar azul-verde onde, em pontinhos longinquos a Alemanha, em guerra, ficava para trás.
Enquanto o som de Malher enche a casa alegre no Brasil, a neblina vai se desfazendo e um céu azul, azul surge orquestrado por pássaros. Um raio de sol reluz numa lágrima de Gisela que chora porque, ontem não existe mais, mas as saudades da terra onde nasceu continua. Chora, Gisela, chora, porque quão grande era o seu coração e quão encantadores foram os anos que desfrutei da sua amizade.
Divinópolis, 17.06.1972