Corre, rio!

Tinha um coreto vazio e gente sentada nos bancos ao redor da praça central daquela cidadezinha à beira do rio. O dia de céu azul ia acontecendo independente da nossa presença. Talvez alguma curiosidade pairasse na cabeça dos moradores de lá ao se deparar com o brilho dos nossos olhos forasteiros, ávidos pelas novidades do lugar que, para eles, não passava de um tedioso cotidiano.

Assim que chegamos, paramos o carro defronte a um caramanchão em forma de arco recoberto de primaveras sem flor, que cobria uma escadinha que dava na rua de cima. Fiquei fascinada! Percebi que aquele passeio seria repleto de imagens como esta, um oásis a 40 quilômetros da capital.

Apesar do sol, fazia frio. Não muito, só o suficiente pra que nos buscássemos um ao outro para abraços e beijos. Ou talvez usássemos isso apenas como desculpa.

Paramos para um almoço delicioso, de comida típica e muito saborosa, num restaurante que ficava em uma casa grande colonial de dois andares, em cujo piso térreo, que dava pra rua, ficava a cozinha e no andar de cima, as mesas. Os objetos rústicos e a própria distribuição arquitetônica da casa denotavam o passado que ali existiu: grilhões pendurados, grades nas janelas, pouca luz natural...Tudo isso já foi nos ambientando para o que viria a seguir. Então, após o almoço, sacamos nossa câmera fotográfica e seguimos em nossa expedição.

A pequena cidade banhada pelo rio guardava a arquitetura original do século XVII, em cujas casas dormiram bandeirantes, escravos, histórias. Paredes espessas, feitas de um barro já extinto e de pau-a-pique, e aquelas janelas gradeadas em madeira-de-lei me faziam sentir a presença dos olhos tristes dos escravos a atravessá-las, enquanto nós circulávamos livres, do lado de fora.

Um pequeno museu. Resolvemos entrar. Pude assim me transportar para o lugar de onde vinham aqueles olhos, e certa claustrofobia se instalou em mim. Resisti e continuei andando pelos cômodos de chão irregular e paredes grossas e mal acabadas. Acima de nós, o telhado sem forro recebia tufos de poeira trazidos pelo vento, que soprava forte. Em minha direção, flutuava um chumaço de fiapos ou penas, não sei bem ao certo, do qual eu me desviei como se estivesse com medo de que aquilo me tocasse e me levasse de novo praquele tempo. Tudo era estranhamente lindo e melancólico, tinha cor e aroma de passado. De medo. De dor.

O beiral na entrada da casa era sustentado por “cachorros” coloniais, um tipo de entalhe em madeira maciça contíguo às vigas de sustentação do telhado.

Saímos dali e fomos para a praça, de onde podíamos ter uma visão completa do centro histórico: a igreja, o museu, as casas coloniais, o chão de paralelepípedos e ao fundo, indolente, o rio. O tempo parecia não ter a pressa costumeira da cidade grande; seguia arrastado, como se até os ponteiros do relógio permanecessem ali naqueles bancos, lagarteando ao sol. Juntamo-nos a eles.

Assim ficamos por algum tempo, como figurantes do cenário, namorando, nos fotografando e observando o contraste que havia entre a preservação da história e os modernos aparatos audiovisuais dos candidatos à próxima eleição. O paradoxo cultural a que assistíamos não nos incomodava a ponto de tirar a beleza do lugar e a felicidade que nos proporcionava. Estávamos em paz.

Mas mesmo lentos, os ponteiros do relógio trabalhavam e quando demos por nós, a tarde já ia adiantada e precisávamos voltar. Trilhamos as calçadas rústicas em direção à escadinha encoberta por primaveras sem flor, que eu reverenciava com a mesma fascinação da chegada, enquanto descia os degraus até o carro. Entramos. Partimos. E o caramanchão em forma de arco sobre a escadinha ficou pra trás, lindo, viçoso, ermo e sem fotografia.