O observador
De longe eu a via tocando, lá de cima. Ela e seu violino, exalando feminilidade. Uma personagem saída das mãos de Botticelli. Uma Vênus, bem como as que eram criadas e contempladas pelos mortais desde a pré-história.
Perdia-me no espetáculo para me envolver no suave movimento dos seus dedos pondo nota por nota, deslizando entre as cordas do instrumento. Pude ouvir apenas o som daquele único violino me enlaçando num abraço firme e acalentador. Tão elegante com seus cabelos loiros presos num coque deixando seu pescoço à mostra, mal sabia que eu o beijara intimamente mais de mil vezes com meus olhos, em tão devastadora sensação que me senti sua sombra, seu fluído. Dentro de sua pele, o próprio tato.
Menina de tez tão alva, de aparência delicadamente negligente, pareceu daqui do alto, não se dar conta própria beleza. Anda sozinha com suas reflexões, não perde seu tempo como eu. Não me cedeu nada da tua atenção, nem um vago olhar de soslaio nos intervalos do Espetáculo. Eu estava lá! Queria que ela soubesse que fui apenas para vê-la tocar. Tirou-me o fôlego. Roubou minha atenção de tal forma, que, por instantes, me vi etéreo levitando sobre minha própria carne, enquanto ela permanecia lá com seu violino, gélida e impenetrável, concentrada na partitura e sua execução. Um sorriso aqui, outro acolá – contei nos dedos de uma mão -, ofertados os colegas, e só! Fechou-se em sua exímia performance.
Ah... Linda criatura dos cabelos dourados, sei que és doce porque meus sentidos se rebelam na sua presença sutil. Sei que és linda porque me arde olhos sua aparição. Sei que és desejada, porque tateio seu corpo branco em meus sonhos. Sei que a quero porque me desprezas com seus olhos tempestivos. Tu podes passar a vida inteira transitando despercebida entre os outros, mas não para mim! Sempre és notada, até quando não quero vê-la.
Anseio conhecer seu mundo, saber das suas idéias, suas fantasias, e apresentar-lhes quem sabe um mundo novo inteiro, incerto, e intenso - o meu.
Então, pediria que me tocasse uma música. Suas mãos pequenas e seguras poderiam fazê-lo facilmente para qualquer outra pessoa, porque não para mim? Queria ter quatro rosas brancas para ofertá-la do alto da cabine, uma a uma, bem ao fim de cada ato, numa louca tentativa de desfazer toda essa neve presente em seu rosto. Arriscaria até um convite ousado só para lhe arrancar um sorriso descontraído, ainda que a resposta fosse um 'não'.
Quando a verdade era que, com menos que isso seu olhar de desconforto soltava rajadas a minha rápida presença. Um desconforto travestido de simpatia tão volátil. Eu era um grande incomodo. Aquele pagante comum, que não tem lugar exclusivo, e cujo nome não aparece no bilhete do espetáculo. Eu era todos e era nada. O meu caloroso aplauso sem se fazer notar, foi silenciado pela multidão.
Escorrera pelos meus dedos o calor que outrora me deglutiu naquela cabine no momento em que eu a observava, quieto. Fugiu dos meus braços aquele seu abraço confortável e o aperto de mão exageradamente forte que outrora senti. Parei e amarguei a lembrança da bela música que ela tocou, para viver a ilusão desfeita e a sua fria melodia me cortando as emoções. Engoli os meus pedaços, um por vez, e as mais lindas imagens que fiz dela naquela noite.