Esteve sempre aqui no meu coração

Quando vi Deiselane, na tentativa quase infantil de esconder. um tanto desconcertada o seu rosto alvo, decorado com lindos olhos azuis como piscina clara, senti-me como que decepcionado. Adorava olhar seus olhos. Ah! quanto tempo fazia, que éramos crianças,

brincando nos pomares e tomando banho de rio. Uma vez a abracei com carinho, numa tarde que pegamos chuva vindo do colégio.

Abrigamo-nos sob uma marquise e ela teve frio. Senti-a tremer um pouquinho.Parecia não ser só da friagem, mas do meu abraço mesmo. O corpo dela estava quente, e a respiração fazia um ruido gostoso. Os seus mamilos estavam entusmecidos, e quando eles tocaram o meu peito, sentiu-se envergonhada e correu na chuva. Escorregou numa rampa de barro vermelho e rolou, sujando todo o uniforme bem cuidado. Ela chorou e eu fiquei triste. Não quis que lha desse a mão. Estava envergonhada, creio eu.

Arranhou os joelhos. Vi no outro dia na escola, os dois pintados de mercuro cromo. Não quis falar comigo. Por mais que eu insistisse, ela dava um jeito de fugir.

E esta estranha repulsa durou um bom tempo. Acho que mais de seis meses. Muitos dos nossos colegas achavam que tinhamos brigado. Cansei de tentar falar com ela e me vir de certo modo rejeitado. Não haviam motivos para Deiselane, agir assim. Não que eu os conhecesse.

Acostumei-me a ficar longe dela e nem dizermos oi. Mas, numa noite, em uma festa na casa do Reinaldo, falamo-nos.

Do mesmo modo que deixamos de nos associar, retomamos nossa amizade. Assim sem explicação. Apenas começamos a conversar. Fomos para a praça, abandonando a festa que estava muito animada. Sentamo-nos no banco que ficava de frente para a igreja de Santo André. As lampadas azuladas que refletiam na pele alva de Deiselane davam-me um conforto visual tão intenso que só percebi que a estava olhando cima abaixo, quando ela, educadamente tentou cobrir as pernas com o vestido.

Fiquei acanhado ,mas, pior ainda seria pedir desculpas, então achei melhor 'entornar logo o caldo de uma vez'.

Disse que ela era muito bonita. Ela ficou calada por um bom tempo, e então eu perguntei se ela não ia dizer nada. Ela disse obrigado e continuou calada. Tomei-a pela mão. Estavam suadas. Mas a noite tava tão fresca que eu perguntei se ela não estava se sentindo bem. Respondeu que sim. E disse ainda suas mão estarem suadas por outro motivo qual eu não entenderia.

Havia algo de estranho. Não conseguia entender Deiselane. Tinha no rosto um semblante feliz, mas ficava calada. As vezes me olhava e parecia que ia dizer algo, mas nunca dizia. Fazia um barulhinho gostoso com a boca e baixava os olhos.

Sempre fazia isso.

Quando a reencontrei, já passados quase dez anos, fiquei chateado por ela esquivar-se de me cumprimentar. Ela sempre fora assim meio esquisita. Às vezes, quando éramos crianças, queria ficar comigo a tarde inteira. Só nos dois. Não queria brincar com mais ninguém, só comigo, e, às vezes, passava dias e dias a me evitar.

Porém, agora já adultos, não nos caberia estas criancices. Fui em sua direção então para cumprimentá-la, afinal, eu é que havia partido da cidade e ficado por mais de nove anos longe. Aproximei-me para falar-lhe e ela virou-se, quando então notei uma mancha rocheada em torno do seu olho esquerdo. Perguntei o que houvera. DIsse apenas que caira e tentou sair.

Segurei-a pelo braço e disse que gostaria de conversar com ela. Estava com saudades. Ela pareceu querer se mostrar um pouco indiferente, mas tinha algo de esquisito. Não era natural. Ela insistiu em partir e eu deixei que fosse embora.

Continuava linda. Ainda parecia aquela menina, só que um pouco maior de corpo.

Fui ver meus amigos de infancia.

Não fora tão abraçado nos ultimos dez anos como naquele dia. Era bom vir aquelas pessoas todas satisfeitas em estarem comigo. Angelo, o mais velho da turma que compunhamos quando crianças, agora pai de três filhas, preparou um churrasco para me dar boas vindas. No dia seguinte nos reunimos na casa dele. Deiselane chegou somente às onze horas da noite, acompanhada do seu marido, que pra mim foi uma surpresa desagradável. Tentei livrar-me daquele sentimento repentino e sem nexo. Que tinha eu de sentir-me assim?! Apesar do marido dela ser alguém notadamente pouco amistoso, isso não me bastava como razão para não gostar de a vir de mãos dadas a ele.

Ela se aproximou trazendo-o pela mão e nos apresentou. Ele apertou minha mão com força mais que nescessária e me provocou um certo desconforto. Não demoraram muito pra anunciarem que iriam embora,e eu experimentei um sentimento confuso. Por um lado gostei daquele sujeito partir dali, e, por outro, fiquei triste por Deiselane ir. Nem conversamos nada.

Mal sairam e um burburinho atravessou a varanda. Ninguém gostava do sujeito. Fiquei sabendo pelos comentários meio entredentes que o nojento batia em Deiselane. Nem entendi a furia que senti ao ouvir isso. Mas tinha de disfarça-la,nem sabia por que, mas não tinha motivos para mais do que lamentar.

Acordei no sábado ás oito da manhã. Há tempos não dormia assim e tão bem. Minha tia Juliana já me havia preparado uma broa de milho. Eu adorava comer as broas que ela fazia, desde a minha infância. Lembrei novamente de Deiselane. Às vezes iamos à casa de minha tia e tomavamos café juntos. Ela gostava de molhar a pontinha do pão no café com leite. Fazia só uma vez e depois comia o pão normalmente. Eu sempre brigava com ela. Dizia não ser educado fazê-lo. Ela ria somente, e fazia

aquele barulhinho gostoso com a boca.

Neste dias que havia voltado para itauna, senti uma espécie de arrependimento por ter ido para tão longe dali e ter ficado por tanto tempo. O lugar, embora tivesse progredido bastante, ainda conservava aquela magia de quando eu era criança. Magia que quase tinha esquecido por completo. O silencio delicioso. O espaço pra andar, pra correr e pra ficar sozinho. Os vizinhos amigos que sempre sorriam quando das visitas. Pessoas que costumeiramente estavam juntas, não apenas pela natureza geografica, mas pelo coração mesmo. Gente simples, de hábitos pouco requintados, mas sinceros e mais limpos de intenções. 'Meu Deus!', pensava eu, 'que fui fazer longe daqui?' . Não era possivel reviver os nove anos e meio passados. Mas, era possivel viver bem, ali , o resto de minha vida.

Sai para passear. A praça da igreja conservava-se quase a mesma. umas pequenas melhorias ,mas ainda era a mesma praça. Tinha o mesmo cheiro de botão de laranjeira. Sentei-me no banco de frente a igreja onde conversei com Deiselane pela ultima vez, antes de partir para o Rio de Janeiro. Lembrei-me de cada palavra que dissemos ali, e algumas delas pareciam fazer sentido somente agora. Mantiveram-se vivas por todo esse tempo e agora floriam no seu significado. Quase podia ouvir o que Deiselane nunca falou quando fazia o barulhinho gostoso com a boca, após ficar por tempo me olhando calada. 'Meu Deus!', como eu fui ingênuo e tolo. Como não pude perceber antes o que nos unia. Não avistei em nenhum de nós a razão das coisas todas, das estranhesas de Deiselane no agir. Céus! Agora ela estava casada.

Como nunca sequer tentei entender as fugas repentinas dela. Os dias sem querer falar comigo. E o meu prazer em apenas olhar para os olhos dela, para a pele branca. O sentimento era tão puro, tão enormemente nobre, que superou todos os limites de minha consciencia.

E agora esse amor imenso estava soterrado por um abismo ainda maior. Meu peito doeu naquele instante. Uma lágrima quase nasceu nos meus olhos. E romperia a rolar pela minha face, não fosse o pai de Renato, o senhor João, tomar-me dos punhos vorazes daquela solidão, ao bater-me carinhosamente nos ombros e deixar soar numa entonação prazerosa o meu nome. Levantei-me e o abracei. Olhei-o cima abaixo. Ainda era vigoroso e cheio de saúde, embora tivesse o cabelo completamente grisalho.

Conversamos por quase uma hora e ele despediu-se. Ia ao cemitério visitar o túmulo de dona Eulália. Teria saudades eternas dela. Não quis acompanhá-lo. Me lembraria dela me dando aula de matemática no colégio Padre Anchieta, na parte da manhã, enquanto eu vivesse. Não queria conhecer o seu túmulo.

Levantei-me do banco e caminhei até a ponte sobre o rio que cortava a cidadela. Ficava a uns quinhentos metros de onde eu estava. Debrucei-me no guardacorpo e fiquei absorto, olhando as ondulações suaves da correnteza. A agua cristalina que vez ou

outra cobria as pedras, brilhava sob os raios do sol daquela manhã cheirosa.

Ouvi ao longe o ruido insistente de um motor de arranque, de algum carro avariado. Andei um pouco, até o meio da larga ponte e avistei um carro vermelho, parado à beira da estrada. Fui até lá para tentar ajudar. Antes que eu chegasse perto, percebi que era Deiselane a motorista do carro. Senti um certo tremor nas pernas e comecei a ouvir as batidas do meu próprio coração. Ela tinha o rosto suado. ALguns fios de cabelo loiro colavam na face ruborizada pelo sol. Pedi que abrisse o capô do carro e eu tentaria ajudar. Andou em minha direção e disse que antes de eu tentar consertar o carro, deveriamos nos cumprimentarmos. Não havíamos feito isso ainda, desde minha chegada. Concordei e estendi a mão. Ela pegou-a e eu senti prazer em tocar a pele sedosa de sua mão. Num gesto quase automatico estendi o corpo para beija-la no rosto. Ela ao mesmo tempo fez gesto igual, e nossos corpos ficaram bem próximos. Senti o cheiro dela. Era mais inebriante do que qualquer perfume de flor. Olhei de perto aqueles lindos olhos azuis e fiquei trêmulo. Tive vontade de abraçá-la e beijá-la naquele instante ,mas eu sabia que não podia dar vazão àqueles sentimentos. Era tarde demais. Disse que ela continuava tão linda quanto antes.

Ela sorriu e disse-me que eu mentia por educação. Não conseguimos consertar o carro e fomos caminhando até a praça. Ela ligou do celular para um mecânico, dizendo a ele que a chave estaria sobre o pneu traseiro. Que o consertasse e o levasse até sua casa.

Quando nos aproximávamos da praça da igreja de Santo André, ela me perguntou se eu me lembrava daquele banco, defronte a igreja. Respondi que foi ali nossa ultima conversa. Ela me respondeu que foi o dia em que morreu pela primeira vez. Fiquei chocado com a palavra e o tom que empregou na frase. Pedi desculpas por ter sido tão tolo e não ter percebido nem em mim mesmo o que sentiamos um pelo outro. Ela falou do que ainda sentia por mim.

Fiquei atonito. Sem palavras. Ela disse que não pretendia me embaraçar, menos ainda ser mal interpretada, visto ser uma mulher casada, mas que não podia mais segurar este segredo só pra ela. Deiselane começou a chorar e me contou o que aconteceu quando eu parti.

Naquela noite na praça seria o dia em que confessaria pra mim o seu amor. Estava decidida a fazê-lo. Desistiu quando eu disse que iria embora. Casou-se com Ernani praticamente forçada pela situaçao financeira dos pais. Seu pai estava doente e devendo muito dinheiro à familia de Ernani. Disse odiar-se por não ter tido coragem de ir me encontrar no Rio de Janeiro e me pedir ajuda. Ela me contou o grosso que era o seu marido. Um sujeito violento, que tocava os negócios com mão de ferro, tinha negócios ilicitos e não tinha o mínimo de escrupulos. Tentou separar-se dele várias vezes, porém, sempre cedia às suas ameaças que sabia ele ser capaz de cumprí-las. Ele ameaçava até mesmo fazer mal aos seus velhos pais.

Fiquei tão triste e irado por saber daquela situação. Como Deiselane era infeliz. Senti-me responsável por sua desgraça. Tinha bem nítido em minha mente que eu não era culpado. Porém, o meu coração não me absolvia.

Continua ....

Roni Muniz
Enviado por Roni Muniz em 05/04/2009
Reeditado em 27/09/2011
Código do texto: T1523358
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.