Um Quantum de Felicidade

Ali reuniram-se por motivo mais do que sério. O trabalho tinha que ficar pronto e ser entregue àquele mesmo dia, pela tarde. Interesses paralelos espreitavam o motivo principal; logo vissem uma oportunidade fincavam pés na conversa. As Brumas de Avalon, Tróia, Eram os Deuses Astronautas? Interesses em comum que se descobriram.

Roçar de mãos e pés que, acidentalmente, se encontraram, acima e abaixo da mesa. Olhares tímidos, furtivos, fugazes, como que resistindo a uma doce tentação de se perder, indefinidamente, um dentro do outro. O ar estava carregado de sonho, fantasia e mistério. E ao fundo, baixinho, no rádio, aquela voz, aquela música tocando, traduzindo o que parecia ser o desejo de duas daquelas criaturas.

“Beija eu!

Beija eu!

Beija eu, me beija

Deixa

O que seja ser

(...)

Deixa!

Eu me deixo...” (1)

O colega que volta e meia trazia todos à realidade dava prenúncios de que o trabalho estaria pronto. Há momentos em que a vida real é mais importante do que o sonho. Uma conferida aqui, outra acolá, tira isso, deixa aquilo outro, revisa ali. Sim, o trabalho estava, bem dizer, pronto. Mais tarde a hora da despedida, e da constatação: um é pouco; dois é bom; três é demais.

-- Até mais tarde! -- disse o colega que se ia.

-- Até! -- responderam em uníssono as duas vozes que ficaram, uma ardendo no desejo da outra.

-- Fica só mais um pouquinho... -- pediu uma voz, com carinho.

-- Tem certeza? -- replicou a outra, num soluço.

Era tudo o que pareciam não ter naquele momento: certezas. Todos os espaços tomados de um sentimento puro, cheirando a descobertas juvenis.

-- Deixa o que seja ser... -- uma das vozes sussurrou.

Só havia lugar para a emoção, o toque e ... Não, não foi simplesmente um beijo. Foi um leve roçar de almas, um suave roçar de pele, narizes, um par de lábios mordendo levemente o par do outro. E um suave roçar, roçar... O calor, o sabor da inocência, o “deixar-se levar” e o “deixar ser” impregnado na lentidão dos movimentos.

Em nenhum momento sequer as línguas se tocaram, mas o toque dos lábios foi arrebatador, como água represada rompendo diques, descendo morro abaixo, arrastando tudo pela frente; pura energia, como vulcão expelindo larva lá do fundo, bem do fundo da terra. E tudo isso num quantum de tempo que a mim pareceu infinito.

E então mais uma vez a realidade, maior do que o sonho, chamou. Passos. Barulho de portão abrindo. O relógio. Perguntas parecia haver muitas. Nem elas nem suas respostas naquele vão caberiam. E assim, após aquele breve momento de magia, descoberta e felicidade pura, a vida seguiu seu curso, aliás, como tinha que ser.

(1) Trecho de Beija Eu, de Arnaldo Antunes e Marisa Monte.

Nota:

Estou tendo dias corridos - quem hoje em dia não os tem, não? - e quase não tem me sobrado tempo para escrever. Tempo, dizem, é questão de prioridades. Porém, há momentos em que a realidade fala mais alto do que o sonho, faz-se ouvir e atender! Sim, escrevi esse conto para relaxar, matar as saudades de escrever. Ao final, tive uma sensação boa. Espero que você, ao lê-lo, também tenha tido :-) Um abraço fraterno.

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Revisado em 01.08.2010 e 17.09.2010