Fragmentos de um romance

Lúcia não se conformou com a morte do pai, caindo num sofrimento aparentemente sem fim. Seu namorado tentava consolá-la de todas as formas, mas nada parecia surtir efeito, fazendo então com que ele ficasse contaminado com sua depressão.

Os dias tristes do casal não cessavam. O namorado de Lúcia, Felipe, via-se desmotivado perante as atividades da vida, incluindo o trabalho e a intimidade conjugal. Aos poucos, a vida do casal foi se tornando um inferno, onde além da tristeza, também vigorava o conflito, causando assim o inevitável. Lúcia e Felipe terminaram seu namoro. A princípio foi doloroso, mas a capacidade de adaptação surpreende as pessoas, o que foi comprovado pelos curtos dez dias que Felipe levou até estar com outra mulher.

Ao longo das semanas, Lúcia se via cada vez pior, sentindo muita falta, além de seu falecido pai, também de seu namorado. Seu brilho havia esmaecido. A pobre moça não era mais abordada pelos homens enquanto andava na rua, mas sim causava a admiração dos seus parentes mais próximos. “Nossa! Como você emagreceu... Está abatida...”. Sua mãe, muito preocupada, sempre conversava com Lúcia, tentando incentivá-la a conhecer novas pessoas, para assim criar distrações que a desviem da melancolia. Percebendo o estado quase vegetativo em que Lúcia estava, D. Mirtes, a mãe, resolveu procurar um companheiro para sua filha, na esperança de que melhorasse as coisas.

Enquanto sua “ex “ permanecia abalada, na vida de Felipe tudo transcorria bem. Ele e Vanessa já pensavam em casamento. “Vamos ficar noivos em maio...”. No trabalho, uma fábrica de produtos eletrônicos, foi promovido a chefe do seu setor, duplicando seu salário. Superficialmente, Felipe já havia se desprendido de Lúcia por completo. Ele já vivia em outra realidade, não mais tendo-a como parte integrante de sua rotina, porém, sabia ele que algo o fazia tremer. Nas vezes em que ele estava sozinho, prestes à sair de seu escritório e almoçar, com a foto de lúcia na mão, hesitara em joga-la fora mais uma vez.

Anunciando que ia fazê-lo, com um grito de aviso, Lúcia foi até a porta ver quem tocou a campainha. À porta, estava um rapaz alto, com olhos negros e ambiciosos, traços angulosos e roupa impecável. Agora ela sabe do que sua mãe é capaz de fazer por sua felicidade, pois assim que viu o rapaz, logo imaginou que se tratava de um encontro arranjado por D. Mirtes. Depois de relutar um pouco, Lúcia acabou concordando com a idéia de saber melhor quem era aquele estranho, já que por mais que não concordasse com a atitude de sua mãe, não tinha algo a perder se distraindo um pouco com alguém.

Enquanto dirigia o carro, Felipe tirava conclusões que até então não haviam lhe ocorrido. Parado ao sinal vermelho, brotavam memórias de sua vida junto a Lúcia, sobre os agrados de estar ao seu lado. Ao tempo em que já se imaginava num caminho sem volta, afundado nos fatos que montaram suas semanas passadas, questionava não saber o motivo de ainda ter frações de suas histórias teimando em vir à tona. Felipe se via obrigado a assumir que esquecer Lúcia não está sendo algo tão fácil quanto imaginava. Dessa vez, ele está notando que sua cabeça mudou, seu amadurecimento está se manifestando na forma de um certo saudosismo, curvando-se a aceitar que ele próprio não julgava ter passado por tantas horas boas ao lado de sua “ex”.

Sentada à mesa do restaurante, Lúcia observava Marcos reclamando com o garçom. “Como pode você derrubar isso em mim? Sabe quanto custou essa camisa?”. Ela pensava em como um simples copo de vinho estava estragando toda a noite. Uma tentativa de diversão acabou se tornando uma discussão incômoda, deixando-a aflita. Seu acompanhante, de pé, já com a voz alterada, humilhava o garçom que só sabia permanecer calado, temendo perder seu emprego, o qual importa muito para ele, por mais que não pareça para os demais.

Lúcia não percebeu, mas mesmo a situação do jantar já havia a entretido, pois naquele momento as suas deficiências sentimentais tinham sido esquecidas, tornando-a mais contente por alguns instantes. No final das contas, a cena do desentendimento com o funcionário se tornou uma lembrança cômica em sua cabeça.

O trânsito lento obrigou Felipe a fazer uso de um caminho alternativo para casa. Virou o carro à direita, acessando um viaduto que contornava por cima da pista, para então passar por uma estrada mais extensa, porém, menos movimentada. Ele economizaria muito tempo não tendo de enfrentar o trânsito tumultuado. Vangloriando-se da sua experiência na hora de acessar caminhos alternativos, o motorista continuava dividindo suas atenções entre o caminho até sua casa e o fluxo de seus pensamentos involuntários. Felipe não mais se esforçava pra conter as lembranças, ao contrário disso, sorria descontraidamente, saboreando as memórias, enquanto a chuva começava a se mostrar do lado de fora do pára-brisa. “Aquele dia foi hilário. Pegamos muita chuva... Ela ficou uma fera!”. Esforçando-se um pouco mais para sentir a nostalgia, Felipe já não mais tinha pressa para atravessar a estrada chuvosa, onde a pouca visibilidade o fazia se reclinar para frente, desembaçando o vidro com uma flanela e acentuando a atenção na pista. “Oh, Lúcia! Por que terminamos?”.

Após o fraquejar da chuva, já se via a estrada nitidamente. Havia nada mais que a pista molhada e uma leve garoa, nada que faça necessário ligar os limpadores de pára-brisa. Haviam várias pessoas andando sobre o acostamento, na maior parte, pedestres desprovidos de guarda-chuva e completamente encharcados. Entre todos os pedestres, alguém lhe chamou a atenção. Havia uma mulher de cabelos longos e negros, encharcada, desnuda pela umidade que transpareceu suas roupas íntimas sob o vestido branco. A andarilha mantinha os braços cruzados e bem colados ao corpo, como se estivesse forçando uma tentativa de afastar o frio e os soluços. O farol do carro de Felipe se aproximava por trás da mulher enquanto ele a observava atentamente, como se alguma coisa o dissesse para repará-la. Quando finalmente o carro e a moça emparelharam, Felipe se esticou até a porta do carona para girar a manivela, abrindo a janela. Sem o vidro embaçado entre eles, ele pôde constatar do que se tratava. “Lúcia! Quer uma carona?”.

Lúcia mantinha-se muda, como ele a encontrara. Colocando a bandeja com uma xícara de café quente sobre a mesa, ela trajava apenas um roupão. Pela primeira vez em quase um mês, Lúcia olhou nos olhos de Felipe e disse algo, e o que fez foi agradecer a carona, além de perguntar se o café estava do seu agrado. Respondendo com um leve sinal com a cabeça, o sujeito retribuiu o olhar. Os minutos de silêncio pareciam horas. Felipe e Lúcia alternavam entre trocas e desvios de olhares, até que ele iniciou o assunto que o atormentou durante todo o dia. Como se algo naquele ambiente os derretesse, quer queira pela temperatura do café ou pelas histórias compartilhadas naquela sala, começaram uma conversa extensa e fluída, em tom severo, porém tranqüilo. “Eu não sei bem o porquê, mas a morte de meu pai foi um choque maior do que eu imaginava”. “Eu deveria tê-la apoiado mais naquele momento... Deixei-me levar pelos problemas no trabalho...”. As xícaras já eram taças com vinho tinto. O roupão já estava mais acomodado ao corpo de Lúcia, revelando uma parte da pele que Felipe não via há muito tempo. Ele tentou fazer seu olhar invasivo e espontâneo passar despercebido, mas ela se ajeitou, com olhar reprovador, não sem antes mostrar seu colo enquanto se curvava para apoiar a taça sobre a mesa. “Não entendo... Estou com uma vontade súbita de possuí-la novamente. Ela está maravilhosa, além de muito à vontade. Será que algum dia eu a jogarei novamente sobre esse tapete, ouvindo suas gargalhadas provocantes?”.

Na porta de sua casa, Lúcia se contraía ao contato com o vento frio. “Então, Lúcia, está na minha hora...”. Após os segundos de silêncio desconcertante, Felipe perguntou por que ela estava a andar naquela rua, sozinha, debaixo de toda aquela chuva. A explicação surpreendente foi a discussão que ela teve com Marcos após sair do restaurante. O fato de Felipe saber que ela esteve com outro homem foi algo que o fez sentir um gelo correr a espinha. “Que tolo eu fui em não levar em conta essa possibilidade... Nada mais normal que ela querer conhecer alguém”. Dito que Lúcia foi em nada mais que um jantar malsucedido, ele se repreendeu mentalmente por ter se importado com tal fato, já que sabia não ter mais direito sobre a vida sentimental dessa mulher. “Eu gostaria de poder beijá-la agora, mas será que ela aceitaria?”. Felipe travava uma batalha mental, contra os impulsos que ele sabia não poder se dar o luxo de atender, fato reforçado por seu noivado. “Impressionante como em momento nenhum eu me lembrei de Vanessa...”.

No caminho para casa, refletindo sobre sua noite, Felipe atendeu o celular. Girando o volante drasticamente para a direita, decidiu mudar seu rumo, não indo para sua casa, mas sim obedecendo a um impulso brutal por fazer algo. “Que há comigo? Não consigo me conter... Eu vou ter de ir até lá”. Minutos depois, ele chegou a casa da mulher na qual ele não conseguiria adiar uma importante conversa. “Eu não saio daquela casa sem resolver isso. Não posso ficar com tal coisa na cabeça, sem solução”.

Vanessa não aceitou ser dispensada, mas procurou entender a atitude drástica, considerando o passado de Felipe com sua outra namorada, além do pouco tempo no relacionamento atual. “Eu sempre soube que ele era um risco. Que seja feliz com ela”.

Felipe dirigiu, sem saber como será recebido. “Será que ela ainda está só de roupão?”.

Rafael S P Valle
Enviado por Rafael S P Valle em 24/03/2009
Código do texto: T1504267
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