O Mundo Criado Pelas Sogras


   Estou a uma gota de me afogar.
   Escolhi meu vestido mais ousado - o verde, de seda pura, que tem um decote bem profundo e, no panejamento da saia, caminhos de renda de algodão. De qualquer maneira, sei que hoje serei pedida em casamento.
   Ainda é cedo. Com trêmula ansiedade, medito bem naquilo que tenho que fazer. Há momentos em que me assalta uma dúvida: arrepender-me-ei? Se isto acontecer, minha vida irá de água abaixo, numa frustração completa. No meu amor por João, empenhei o melhor de mim mesma. Não tenho o refúgio da arte. A arte é uma coisa maravilhosa. Nós atiramos sapos, monstros e calhaus no caminho dos artistas e eles no-los devolvem transformados em anjos. Transmutam a própria dor em canção.
    Eu não sou assim. Não posso fazer isso, quero dizer. Minha vida não é como um rio que se multiplica em afluentes e confluentes...
Um dia, tentei escrever versos, mas eram românticos e uma professora romântica é algo de muito ridículo... Sinto-me um pouco empedernida.
    Operou-se em mim uma transformação de dentro para fora. Nada espero do mundo. Espero de mim mesma. O vinho dos meus festins não será servido pelas mãos do acaso.
    Olho-me no espelho: estou bem feminina, minha carne pede vida, realizações, intensidade... A juventude é enfática em mim.
    O perfume é para que João sinta minha presença com pungência de fome.
    E agora?
    Vou para o meu destino. O portão da casa branca está fechado. Tenho dificuldade em abrir o trinco. Quem o haveria trancado? Ah, consegui. Outro dia, talvez bata palma como uma estranha. Hoje, não.
    A terra está lisa e acamada com a chuva de ontem. Por aqui caminhamos... Amamo-nos com toda a pureza do ato gratuito e as vibrações de nossas horas de delírio hão de ter criado no infinito uma nova estrela. Tenho vontade de beijar essas árvores uma a uma. 
    Lá está João no fim da varanda, sentado na grande cadeira de cana da Índia. 
    - Nara...
    Percebe a carne desnuda até o ombro, agita-se, seus dedos estão trêmulos...
    - Nara, você está muito bonita!
    - Nara, tenho a honra de pedi-la em casamento para meu filho João. Doutor Adalberto era só entusiasmo. 
    - Você deve compreender que estamos aceitando uma imposição do João. Pelo nosso gosto, ele não se casaria agora. Era evidente que estas palavras da mãe de João...
    -Eu sei, Doutor Adalberto. O Senhor há de compreender que, de modo algum, trocaria um futuro que se prenuncia brilhante por este casamento que já causa tão importante resistência...
    - Você não passa de uma pobretona de nariz em pé! Disse a mãe de João.
    - Em todo caso, eis minha resposta: não casaria com um homem submisso à família, nem que ele fosse o rei da Inglaterra!
    Doutor Adalberto ergue-se. Irado, leva a mulher para dentro.
    - Você de tudo faz uma briga! 
    Estamos sós. 
    - Adeus, digo com firmeza. 
    - Não, você é minha!
    - Por quê? 
    - Porque fui o primeiro. Você era virgem. Estou apaixonado. Você não entende, não sente, não me ama também?
    Amarga é a colheita da vingança. Destrocei-os a todos, pensando que, com isto, recuperaria o que havia perdido há tanto tempo... Paz? Não, a paz deve ser um sono sem sonhos e isto agora é um pesadelo. 
    - Já está em tempo de fazermos nossas despedidas. Pretendo viajar o mais brevemente possível e, por isso, preciso cuidar das passagens e de tantas outras coisas. 
    - Narinha, você está dando um salto no escuro. Pense, Narinha! Você pode estar grávida de mim.
    Retraio-me como que tocada por ferro em brasa. Mas a vingança tem que ser completa e acho forças para sorrir. 
    - Pensa que não tomei precauções?
    - Você me matou, Nara! Você me matou!
    Deixe-se de tolices. Sua mãe arranjará outra esposa. Bem. Acho que não é conveniente despedir-me de seus pais. 
    João relaxa-se.  A cabeça pende para o peito. A mecha de cabelo escorrega para a testa. Tenho vontade de consertá-la, mas desse gesto talvez renascesse a terenura antiga. Deixo-o todo inteiro para sua mãe.
    - Adeus, João. Quero saber de você bem feliz e esquecido desta pobretona besta.
    Não responde. É horrível saber que ele está chorando um pranto sem lágrimas. 
    Afasto-me sem que ele dê sinal de perceber-me. estarrecido. Na esquina da varanda, volto-me: é a última vez que vejo meu cisne... Eu o amava brancamente e transformaram-me numa fera. Escuto-lhe a voz murmurando: 
    - Você me matou... Você me matou!
    O último impulso de minha humanidade desintegrada impele-me a voltar, a abrigar no seio aquela cabeça atormentada. Mas isto é uma vingança e figo cerrando os dentes:
    -Pobre do meu rico cisne... Acaricio meu ventre fertilizado. Minha alma continua doce. Não estou só.     
Flávia Melo
Enviado por Flávia Melo em 18/03/2009
Reeditado em 18/03/2009
Código do texto: T1493731