Desmantelo
A paisagem é a mesma. Apenas eu mudei. A dor tirou de mim a esperança de realizar meu sonho de felicidade através do amor. Meus olhos perderam o brilho. Estão por aí, desaprendendo a sorrir. Com a tristeza atravessada no ventre, revejo o que, um dia, foi a cor-local de minha felicidade.
Lá está o cafezal imenso cobrindo todo o vale e subindo encostas. O céu azul, onde passam, quase transparentes, nuvens brancas, como pedaços de minha saia esgarçados, soltos no ar, parece brotar do cocuruto do morro onde se une ao resto da mata densa, de um verde escuro, contrastando com o verde claro dos cafezais.
Para cá da ondulante folhagem dos pés de café, erguida sobre uma leve colina e separada do rio por um amplo jardim está a casa. Velha casa branca, abrindo janelas e portas para descansados alpendres circundados de gradis de ferro trabalhados.
A casa está bem acima do jardim , para o qual se desce por uma escada de mármore branco.
A grama, sobre a qual estou sentada, na margem oposta do rio, tem o mesmo frescor daquela em que, na meninice, eu tanto gostava de sentar de costas e ficar olhando as nuvens formarem figuras bizarras, inesperadas. Por vezes um anu riscava o espaço, dando, assim, uma pincelada escura na paisagem predominantemente verde.
Entre mim e a casa está o rio. Largo, com suas águas mansas a rebrilharem ao sol forte e formando espumas ao chocarem-se nas pedras emersas. Nesta época do ano, ele corre manso, pulando feito moleque, de pedra em pedra, até alcançar o beijo das fores silvestres à margem. Noutras épocas, as águas crescem, encapelam-se e se espraiam, sobem ribanceiras.Agora, no estio, o rio está dócil como sempre o apreciei. É o amigo. O cúmplice. O confidente.
À minha direita está a ponte de ferro. Velha ponte ainda pintada de cinza desbotado e onde já aparecem algumas manchas de ferrugem. Com as águas baixas, muita gente deixa de utilizá-la, despreza-a. Principalmente as crianças. Preferem atravessar o rio pulando de pefra em pedra.
Eu fazia assim... Ele também...
Lá está a casa. Conserva-se branca, mas as janelas não são mais vedes. Têm, agora, uma desesperada cor de laranja. Teimo, contudo, em vê-las verdes. Verdes como sempre as vi. Verdes como sempre as quero ver.
Espalho o olhar abrangendo toda a frente da construção e noto-lhe um quê de tristeza, de abandono. Ou será apenas minha impressão? Minha tristeza? Essa tristeza que, julgo, jamais poderei vencer.
Com as mãos, limpo os olhos de pequeninas lágrimas, do passado contundente, de tanta saudade, meu Deus! Olho para as janelas outra vez. A estradinha que leva à cidade ainda é de terra batida ladeada de mato indisciplinado. O jardim está descuidado. Há mato rasteiro nos canteiros de rosas e violetas. Uma das palmeiras que ladeiam a escada está decepada um pouco abaixo da copa como alguém que, embora tendo sua cabeça cortada, teimasse em permanecer de pé. Rijo e sem beleza ali ficou, inútil tronco. A palmeira solitária, abandona suas folhas ao sabor dos folguedos do vento.
Meus olhos continuam procurando, procurando... Resolvo fechá-los e, aos poucos, vou me deitando na grama.
Olho para dentro de mim mesma. Tudo tão vago, tão desordenado...
Recordações, tudo o que tenho.
A voz soa fria, indiferente como se desse uma notícia triste, do cotidiano.
- Sabe quem morreu? - e, sem esperar minha resposta, acrescentou ao mesmo tom desinteressado:
- Cecé - e aduziu: Coração, dizem
A notícia dada assim, com simplicidade e tão abruptamente, não me chocou de imediato. Foi aos poucos que tomei consciência do quanto era dor. E do quanto era irreversível. Nunca mais. Morte. Fim. Opressão no peito. Cá estou, inutilmente viva. Lembro-me do nó na garganta. Pensamentos no caos. Era o desespero de saber perdido para sempre o motivo maior de minha alegria, de saber perdida a própria possibilidade de ser feliz. Perdido o poético voo do pássaro atravessando o ocaso preciso. Perdido o suspiro gracejando a alma. Sonhos, ilusões, planos, fantasias, o viver maravilhoso... Cecé morria do coração.
Minha mãe continuava, calmamente, passando as contas do terço. Impregnado de banalidade, balbuciei, enfim:
- Mas... tão jovem!
Pedia a Deus que me deixassem só. Arrependia-me de ter provocado a possibilidade do diálogo.
- É. Pra morrer não tem idade.
Acho que foi isso que ouvi. Pior, muito pior estava o que restava dentro de mim. A noite era um parto ao avesso.
Hoje, continuo olhando a casa, o jardim, a estradinha. Já não vejo tão claramente. É como se olhasse através de transparente cortina e enxergasse tudo envolto em névoas. Fecho os olhos outra vez. Deixo correrem as lágrimas. Contidas por tanto tempo... por que não agora? Se tantos mundos cabem em cada uma delas, como retê-los no peito assim esprimido, apertado... Sento-me, cabeça entre as mãos, abandono-me ao passado. Sem futuro.
Sapatos de verniz preto brilhavam ao sol daquela manhã domingueira. A camisa branca formava um belo contraste com a face morena, com os olhos e os cabelos negros. Olhos do meu amor, menino lindo, como te guarda meu saudoso cantarolar. Acenos ao longe, o cafezal, a cidadezinha, e uma vida a nascer, tendo que esperar. Estes mesmos olhos que, nas noites de solidão,sinto pousar nas minhas mãos como um elo atemporal entre mim e ele. E o rosto que, em minha memória, apalpo, procurando sentir o calor das têmporas tocadas por meus lábios em intenção de beijo.
Vejo-o caminhar até a margem do rio. Salta a primeira pedra e começa a travessia. Fico a contemplá-lo. O pé direito sempre à frente do esquerdo, servindo de base. Quando chega à margem de cá - onde agora me encontro - seria neste mesmo lugar? - estendo-lhe as mãos para ajudá-lo a subir a ribanceira.
Depois de entregar-me seu mais lindo sorriso do dia, passa as mãos sobre meus cabelos e alisa-me o vestido. Calado, estende-me novamente as mãos e fica a fitar-me como sempre o fazia quando tinha alguma coisa a censurar-me ou pressentia que eu estava evitando fazer-lhe alguma revelação. Notei haver em seu olhar não só curiosidade, mas tristeza.
-Então, por que não diz logo o que tem na cabeça? - perguntei.
- Mas...
-Sabe que não conseguimos econder nada um do outro. Alguma coisa está preocupando você. É meu sentimento.
Houve silêncio.
Havia, isso sim, cumplicidade e cosmovisão.
- É uma idéia ainda. talvez um projeto.
- Estou incluída nele?
- Existe por sua causa. Tenho receio de que não goste, pois vou ausentar-me por um ano, talvez dois.
Olhávamos para o chão. Para o espaço. Para lugar nenhum.
Você me engana. Já sabe até quando partirá. E nem compartilhou a decisão comigo. Também já me esqueci de soluçar. Agora vou aprender a dizer adeus de peito estufado. Nem ligo.
- Viajarei daqui a cinco dias. Vai esperar por mim?
Quando a primeira lágrima caiu, os dois corpos se abraçaram. Cada um quis fazer-se forte a seu modo. Tantas coisas foram ditas, tantas promessas. Nada fazia sentido!
Houve alguns contatos no início, mas duraram apenas o tempo suficiente para percebermos que não sabíamos nos manter vinculados à distância. Tudo era sempre ausência.
Abandonamo-nos.
Meus olhos negros jamais se iludiram outra vez. Aprenderam a transmitir uma quieta angústia que me extrapolava a alma.
Deitada nesta grama, percebo a utopia a que me entreguei. A casa ali continua. Branca. Indiferente à dor. Paisagem não sabe doer. Abre-se uma das janelas. Aos pulos, meu coração indaga: milagre? Diviso apenas um vulto escuro que desaparece. Para os lados da ponte as sombras crescem sobre o rio. O sol vai se escondendo atrás da colina. Ah! Meu peito... oprimido! Levanto-me e, antes de iniciar o primeiro passo, lanço um último aceno ao rio, um derradeiro olhar às pedras de tantos idílios silenciados.
Volto-me ao infinito e, soluçando, balbucio em voz alta:
- Espera-me agora, meu amor, ainda neste manso ocaso. Encontar-me-ei contigo, antes de cuspir-me consciência a exuberante aurora!
A paisagem é a mesma. Apenas eu mudei. A dor tirou de mim a esperança de realizar meu sonho de felicidade através do amor. Meus olhos perderam o brilho. Estão por aí, desaprendendo a sorrir. Com a tristeza atravessada no ventre, revejo o que, um dia, foi a cor-local de minha felicidade.
Lá está o cafezal imenso cobrindo todo o vale e subindo encostas. O céu azul, onde passam, quase transparentes, nuvens brancas, como pedaços de minha saia esgarçados, soltos no ar, parece brotar do cocuruto do morro onde se une ao resto da mata densa, de um verde escuro, contrastando com o verde claro dos cafezais.
Para cá da ondulante folhagem dos pés de café, erguida sobre uma leve colina e separada do rio por um amplo jardim está a casa. Velha casa branca, abrindo janelas e portas para descansados alpendres circundados de gradis de ferro trabalhados.
A casa está bem acima do jardim , para o qual se desce por uma escada de mármore branco.
A grama, sobre a qual estou sentada, na margem oposta do rio, tem o mesmo frescor daquela em que, na meninice, eu tanto gostava de sentar de costas e ficar olhando as nuvens formarem figuras bizarras, inesperadas. Por vezes um anu riscava o espaço, dando, assim, uma pincelada escura na paisagem predominantemente verde.
Entre mim e a casa está o rio. Largo, com suas águas mansas a rebrilharem ao sol forte e formando espumas ao chocarem-se nas pedras emersas. Nesta época do ano, ele corre manso, pulando feito moleque, de pedra em pedra, até alcançar o beijo das fores silvestres à margem. Noutras épocas, as águas crescem, encapelam-se e se espraiam, sobem ribanceiras.Agora, no estio, o rio está dócil como sempre o apreciei. É o amigo. O cúmplice. O confidente.
À minha direita está a ponte de ferro. Velha ponte ainda pintada de cinza desbotado e onde já aparecem algumas manchas de ferrugem. Com as águas baixas, muita gente deixa de utilizá-la, despreza-a. Principalmente as crianças. Preferem atravessar o rio pulando de pefra em pedra.
Eu fazia assim... Ele também...
Lá está a casa. Conserva-se branca, mas as janelas não são mais vedes. Têm, agora, uma desesperada cor de laranja. Teimo, contudo, em vê-las verdes. Verdes como sempre as vi. Verdes como sempre as quero ver.
Espalho o olhar abrangendo toda a frente da construção e noto-lhe um quê de tristeza, de abandono. Ou será apenas minha impressão? Minha tristeza? Essa tristeza que, julgo, jamais poderei vencer.
Com as mãos, limpo os olhos de pequeninas lágrimas, do passado contundente, de tanta saudade, meu Deus! Olho para as janelas outra vez. A estradinha que leva à cidade ainda é de terra batida ladeada de mato indisciplinado. O jardim está descuidado. Há mato rasteiro nos canteiros de rosas e violetas. Uma das palmeiras que ladeiam a escada está decepada um pouco abaixo da copa como alguém que, embora tendo sua cabeça cortada, teimasse em permanecer de pé. Rijo e sem beleza ali ficou, inútil tronco. A palmeira solitária, abandona suas folhas ao sabor dos folguedos do vento.
Meus olhos continuam procurando, procurando... Resolvo fechá-los e, aos poucos, vou me deitando na grama.
Olho para dentro de mim mesma. Tudo tão vago, tão desordenado...
Recordações, tudo o que tenho.
A voz soa fria, indiferente como se desse uma notícia triste, do cotidiano.
- Sabe quem morreu? - e, sem esperar minha resposta, acrescentou ao mesmo tom desinteressado:
- Cecé - e aduziu: Coração, dizem
A notícia dada assim, com simplicidade e tão abruptamente, não me chocou de imediato. Foi aos poucos que tomei consciência do quanto era dor. E do quanto era irreversível. Nunca mais. Morte. Fim. Opressão no peito. Cá estou, inutilmente viva. Lembro-me do nó na garganta. Pensamentos no caos. Era o desespero de saber perdido para sempre o motivo maior de minha alegria, de saber perdida a própria possibilidade de ser feliz. Perdido o poético voo do pássaro atravessando o ocaso preciso. Perdido o suspiro gracejando a alma. Sonhos, ilusões, planos, fantasias, o viver maravilhoso... Cecé morria do coração.
Minha mãe continuava, calmamente, passando as contas do terço. Impregnado de banalidade, balbuciei, enfim:
- Mas... tão jovem!
Pedia a Deus que me deixassem só. Arrependia-me de ter provocado a possibilidade do diálogo.
- É. Pra morrer não tem idade.
Acho que foi isso que ouvi. Pior, muito pior estava o que restava dentro de mim. A noite era um parto ao avesso.
Hoje, continuo olhando a casa, o jardim, a estradinha. Já não vejo tão claramente. É como se olhasse através de transparente cortina e enxergasse tudo envolto em névoas. Fecho os olhos outra vez. Deixo correrem as lágrimas. Contidas por tanto tempo... por que não agora? Se tantos mundos cabem em cada uma delas, como retê-los no peito assim esprimido, apertado... Sento-me, cabeça entre as mãos, abandono-me ao passado. Sem futuro.
Sapatos de verniz preto brilhavam ao sol daquela manhã domingueira. A camisa branca formava um belo contraste com a face morena, com os olhos e os cabelos negros. Olhos do meu amor, menino lindo, como te guarda meu saudoso cantarolar. Acenos ao longe, o cafezal, a cidadezinha, e uma vida a nascer, tendo que esperar. Estes mesmos olhos que, nas noites de solidão,sinto pousar nas minhas mãos como um elo atemporal entre mim e ele. E o rosto que, em minha memória, apalpo, procurando sentir o calor das têmporas tocadas por meus lábios em intenção de beijo.
Vejo-o caminhar até a margem do rio. Salta a primeira pedra e começa a travessia. Fico a contemplá-lo. O pé direito sempre à frente do esquerdo, servindo de base. Quando chega à margem de cá - onde agora me encontro - seria neste mesmo lugar? - estendo-lhe as mãos para ajudá-lo a subir a ribanceira.
Depois de entregar-me seu mais lindo sorriso do dia, passa as mãos sobre meus cabelos e alisa-me o vestido. Calado, estende-me novamente as mãos e fica a fitar-me como sempre o fazia quando tinha alguma coisa a censurar-me ou pressentia que eu estava evitando fazer-lhe alguma revelação. Notei haver em seu olhar não só curiosidade, mas tristeza.
-Então, por que não diz logo o que tem na cabeça? - perguntei.
- Mas...
-Sabe que não conseguimos econder nada um do outro. Alguma coisa está preocupando você. É meu sentimento.
Houve silêncio.
Havia, isso sim, cumplicidade e cosmovisão.
- É uma idéia ainda. talvez um projeto.
- Estou incluída nele?
- Existe por sua causa. Tenho receio de que não goste, pois vou ausentar-me por um ano, talvez dois.
Olhávamos para o chão. Para o espaço. Para lugar nenhum.
Você me engana. Já sabe até quando partirá. E nem compartilhou a decisão comigo. Também já me esqueci de soluçar. Agora vou aprender a dizer adeus de peito estufado. Nem ligo.
- Viajarei daqui a cinco dias. Vai esperar por mim?
Quando a primeira lágrima caiu, os dois corpos se abraçaram. Cada um quis fazer-se forte a seu modo. Tantas coisas foram ditas, tantas promessas. Nada fazia sentido!
Houve alguns contatos no início, mas duraram apenas o tempo suficiente para percebermos que não sabíamos nos manter vinculados à distância. Tudo era sempre ausência.
Abandonamo-nos.
Meus olhos negros jamais se iludiram outra vez. Aprenderam a transmitir uma quieta angústia que me extrapolava a alma.
Deitada nesta grama, percebo a utopia a que me entreguei. A casa ali continua. Branca. Indiferente à dor. Paisagem não sabe doer. Abre-se uma das janelas. Aos pulos, meu coração indaga: milagre? Diviso apenas um vulto escuro que desaparece. Para os lados da ponte as sombras crescem sobre o rio. O sol vai se escondendo atrás da colina. Ah! Meu peito... oprimido! Levanto-me e, antes de iniciar o primeiro passo, lanço um último aceno ao rio, um derradeiro olhar às pedras de tantos idílios silenciados.
Volto-me ao infinito e, soluçando, balbucio em voz alta:
- Espera-me agora, meu amor, ainda neste manso ocaso. Encontar-me-ei contigo, antes de cuspir-me consciência a exuberante aurora!