Arnaldo, o rogador de pragas
Arnaldo era um homem tão elegante que quando rogava pragas, o amaldiçoado ainda ficava lhe devendo favores.
Arnaldo era assim. Insone, um homem míope de meia idade, cujos óculos de fundo de garrafa conferiam-lhe um ar grave e austero. Sua voz de barítono silenciava multidões e tinha o dom da atenção alheia. Adorava rogar pragas, aprendera com sua madrinha a majestosa arte desde tenra idade, tinha recebido dela a iniciação – Desce daí moleque, senão vai quebrar um braço!, E assim se sucedeu, ficando quarenta dias com o braço imóvel no gesso e espantado com a praga que deu certo.
- Deu certo! Dizia ele numa estupefação própria dos meninos que acabam de descobrir um tesouro enterrado. Tinha vislumbrado um mundo novo. Tinha o poder nas palavras.
E saía dizendo: - Deu certo, deu certo, deu certo.
- Deu certo o que, menino? Perguntava a mãe preocupada com o corre-corre de “deu certo” por toda a casa. Esse menino ainda vai me deixar maluca.
Arnaldo sabia diferenciar a voz para rogar pragas e a voz para atinar uma atenção. Foi treinando os tênues melindres de tonalidade de voz para que a praga rogasse com o devido efeito. Quando tinha dúvidas passava os fins de semana na casa da madrinha que a cada dia aperfeiçoava os vocábulos em tonalidades de graus mais difíceis.
Numa tarde de sábado, o tempo morno e úmido convidavam para uma soneca de preguiça, as brincadeiras ficaram entediadas e o bocejo já era uma constante quando Arnaldo resolveu deitar na rede da varanda. Já tinha tirado os chinelos e os óculos quando ouviu a voz tão conhecida da madrinha – Naldinho, seu preguiçoso, levanta daí e vai brincar, olha que se você dormir num dia tão bonito como este não vai acordar mais hein?
Perdeu o sono para o resto de sua vida, não queria ver concretizar a praga, que, como diz o sábio, praga de madrinha é pior que doença!
- E se a doença for praga de madrinha, o que é pior? Perguntava Arnaldo confuso.
- Pior que praga de doença de madrinha, é você desobedecer à madrinha e levar mais uma praga por cima. Dizia na sua ingenuidade Aricélia, a doce segunda mãe do menino.
Aricélia ou Celinha, como todos a chamavam, amava aquele menino como se fosse um filho, uma loura baixinha de curvas cheias e braços tão largos que se tentasse abraçar toda a sua enorme família – era quatorze irmãos - conseguiria. Tinha na sua razão que a educação e a obediência eram frutos do temor, e assim sendo amedrontava Naldinho para que ele crescesse com a firmeza de caráter dos homens do faroeste que ela assistia nas matinês de domingo no cinema da cidade. Amava Burt Lancaster e tinha um pôster colado na porta do armário do quarto, preso no lado de dentro para que o marido não visse. – É cheio dos ciúmes, dizia às vizinhas que vinham visitá-la de vez em quando, e Celinha aproveitava para mostrar “seu Burt”. Muitas vinham para isso mesmo, e tentavam arrancar-lhe a verdade sobre a posse do retrato, mas Celinha desconversava entre um riso de satisfação e outro, de admiração por homem tão bonito. Tinha ganhado o retrato do lanterninha do cinema, um rapaz franzino e dedicado que nutria amores escondidos por ela, e, sabendo da afeição pelo artista, deu de presente a propaganda do filme que rodaria dali uns dias certo de que ganharia o amor da mocinha. Ao patrão não soube explicar o sumiço do cartaz e durante aquela semana ficava à porta do cinema com um megafone informando aos passantes que o filme – O Vale da Vingança – estrelado por Burt Lancaster passaria na sessão das quatorze, das dezoito, e das vinte e uma horas.
Celinha não apareceu nem na primeira e nem na última sessão da semana, o lanterninha foi até a casa dela e proferiu as seguintes palavras
- Você vai casar com um homem tão feio, mas tão feio que terá medo de ter filhos com ele.
E assim aconteceu. Ninguém conseguia acreditar que aquela menina bonitinha havia se casado com um Burt Lancaster às avessas. Mas a praga aconteceu pela metade, ela teve filhos sim, mas só para mostrar ao lanterninha – que ela nem sabia o nome – que não era como ele havia dito.
Arnaldo soube dessa história pela prima de outra tia, confirmou as suspeitas de que a madrinha era uma “expert” no assunto. E nada melhor ao professor do que o conhecimento da prática. Por aí começou sua vida de rogação de pragas. Iniciou com pequenas coisas, plantinhas que depois de sua rogativa murchavam tristemente, cachorros que se enroscavam nas cordas que os prendiam, foi ganhando confiança.
Quando ia ao trabalho, muitas vezes passava por alguma moça bonita e dizia – Você vai casar comigo. A coitada sabendo de antemão a fama daquele rapaz rogava aos pais por um estudo em outra cidade, e assim mudava-se de mala para que a profecia não se cumprisse. Arnaldo só notava o desaparecimento da beldade muito tempo depois, quando algum conhecido comentava que a fulana havia ido estudar arquitetura na capital.
Não se casou naquele tempo, todas as moças que faziam parte de sua lista de futuras esposas mudavam-se de uma hora para outra. Casou muito tempo depois, quando tinha perto dos quarenta anos por imposição de uma mulher que o havia escolhido para esposo. Armou uma situação vexatória em frente aos pais obrigando-o a pedir-lhe a mão.
Não gostava dela e abria o rol de pragas que ecoavam pela casa inteira. – Você verá, não teremos filhos. Tiveram oito. – Você nunca saberá que tipo de comida eu gosto, e se souber vai acabar queimando tudo. Pois a cada refeição repetia com gosto os pratos preparados pela esposa. – A água do poço vai secar e você terá que andar quilômetros para trazer água. O poço vertia cada vez mais água, e era tanta que acabou sendo dividida entre os vizinhos. – Seus cabelos cairão da cabeça, você vai ficar careca. Aquela fartura de cabelos negros procriava a olhos vistos, muitas vezes foi vista no salão cortando para vendê-los a uma fábrica de perucas. – Nosso casamento não vai dar certo. E a cada dia que passava Arnaldo ficava cheio de ciúmes e ruminava o ardor que sentia pela mulata cada dia mais perfeita.
Desistiu e passou a rogar coisas boas à esposa. Pois não é que surtiram o efeito contrário? O poço secou, as galinhas morreram, trazia marmita para o almoço porque a mulher não era mais capaz de cozinhar sem queimar a comida e as panelas junto, numa ocasião quase fez pegar fogo a casa. A mulher entristeceu.
Arnaldo foi procurar a madrinha, já uma senhora septuagenária e explicou tudo desde o começo, procurava uma solução agora que amava tanto a mulher e queria ser feliz com ela.
- Meu filho, as pragas rogadas um dia voltam a quem as rogou. Cuide que você está recebendo nada mais do que a reação natural de quem relaxou a tensão do dia a dia, de fazer tudo o que você mandava. Pois não foi assim comigo? Onde estão minhas visitas costumeiras se não é somente a solidão que me aguarda em cada canto da casa. Maldita hora que não me casei com o lanterninha, esses cuidados estúpidos que ferem a alma na superfície, mas marcam profundamente uma existência. Quando você parou de alertá-la; que era a única maneira que ela conhecia, subentendeu que havia desistido dela.
Foi para o trabalho sem proferir uma palavra e maldizendo o dia que descobriu deslumbrado que as pragas acontecem. Tanto que esqueceu a marmita em casa.