Olhos Abertos no Escuro


    Em algum canto da casa, pinga uma torneira. parece o próprio coração da noite pulsando na minha insônia. Torço-me sob os lençois, estiro-me a fio comprido e desisto de manter os olhos fechados. A treva espessa anula os exíguos limites do meu quartinho sem janelas. A treva é ampla e cria uma perspectiva de profundidade aos olhos dilatados. 
    Apenas um pingo d'água, como um coração pulsando na noite adormecida.
    Imagino-me dentro de um balão solto na estratosfera, sem governo e sem rumo, como nos filmes de excursão à lua; imagino-me despojada de todas as máscaras e atitudes que a vida em promiscuidade impõe.
    Muitas vezes acontece-me isto. desde que me tornei pessoa adulta, dei para sofrer de insônias. "Sofrer" não é a palavra exata, pois, durante as vigílias no escuro, liberto-me da carga de realidade das cruas imagens e deixo-me embalar por uma estranha felicidade de pensar o que me apraz, de compor-me a mim mesma com a leveza de um deus compondo a rosa.
    Dentro da escuridão, torno-me imponderável e fácil - um ser construído na argila das mais puras vibrações.
    Desde criança, gosto de pensar coisas, de desencantar novas ideias e perspestivas de conceitos petrificados.  Tio Mauro diz que sou contemplativa... Pouco importa a palavra. Acho temerário definir-se uma pessoa por uma simples palavra.
    Amadureci muito através destas meditações, descobrindo cedo que tenho muito mais a aprender comigo mesma do que com os outros.
    Os pais, por falta de sincera coragem, levam para a sepultura a verdadeira experiência, sem a transmitirem aos filhos. O verdadeiro saber , os filósofos não põem nos livros. As religiões se esqueceram de dogmatizar a verdade essencial.
    Quero resumir vocabulários, catar com paciência as palavras mestras, não deixar a minha emoção de vida ao léu das correntes incertas. Quero a revelação da forma verdadeira que se esconde neste mundo polimórfico onde morte e amor afivelam máscaras científicas, religiosas, poéticas. Quero um cristal na concha de minha mão.
    Gosto de ficar assim, liberta de tudo, na amplidão da treva. tento ver com meus próprios olhos e só consigo quando estou mergulhada na escuridão. Sou cabeça sem memória, presença humana, sofrida e pura; minha voz, canoa no mar noturno das palavras, contornando as escolhas dos nomes. Nem relógio, nem calendário. Apenas o tempo fluindo através dos meus momentos intraduzíveis, das minhas horas individuais, que nunca foram vividas nem o serão, jamais.
    Às vezes tenho medo de tirar do fundo do poço a minha face sem máscara, de tomá-la em pinças, friamente, como um cientista examinando cobaias entre os luzentes mecanismos de seu laboratório.
    Coragem do gesto novo que busca a vida relativa, fora das imagens e dos sons.
    Um dia - meu pai ainda era vivo - parei ante uma luxuosa vitrine. Aproximava-se o Natal, então. A vitrine estava povoada de róseas bonecas. Pedi:
    - Mamãe, este ano, quero aquela grandona, vestida de noiva.
    Como atingida por um golpe, mamãe encolheu-se. Desfez-se-lhe o sorriso deslumbrado com o qual também estivera olhando as bonecas. Murmurou, enquanto me arrastava para longe das tentações:
    - Nem pense nisso, menina. Nós somos pobres... Você já descobriu o que é a pobreza?
    Depois da desagradável viagem de volta ao nosso subúrbio e quando já pisávamos o pó envolvendo nossa rua sem calçamento, a pergunta saltou-me na memória, como um peixe doido nas ondas da preamar.
    -Já descobriu o que é a pobreza?
    Observei como nossa casa era pequena e feia, encolhendo-se como gato enjeitado à sombra da mansão branca do doutor Sílvio - pai de Fernando, sempre presente em meus primeiros sonhos líricos, em minhas primeiras rimas secretas. Enquanto a nossa casa olhava para o chão, sob a penumbra envergonhada das biqueiras, a outra expandia-se em requintes, em escadarias de pedra, em terraços rendilhados de trepadeiras.
    Àquela época, eu já possuía entendimento para certas coisas. Meu pai - funcionário público - comprara-a com sacrfício de muitas pequenas regalias de nossa vida diária. Para pagar-lhe as prestações, escutava, com tom fundamental de uma chata sinfonia a palavra economia.
    Economia devia ser coisa para pobres, porque os ricos, para gastar mais, cuidam apenas de ganhar mais...
    Em espantado silêncio, comecei a descobrir o que era a pobreza: era o pão solitário na mesa última, sobre a qual se debruçava mais um sorriso de escárnio de tio Mauro. Pobreza - o mundo resumido de todas as modernas maravilhas do conforto, num chão sintético de todas as privações, um chão que todos os dias as crianças sujavam, que todos os dias a mãe limpava, para que do pai não saltassem reclamações...
    Pobreza era a cabeça tombada de cansaço, as mãos magras, as veias túmidas. 
    Era a palavra magra mal contida no lábio que esquecera as preces. 
    Hoje nossa casa está reformada. Não tem aqueles ares de gato enjeitado. A pobreza consertou-se um pouco. Os olhos de mamãe não choram mais nos rasgões dos meus vestidos muito usados...
    Estranhas vozes do passado, perdidas nos ermos do coração.
    Por que as escuto hoje?
    Lembro-me de Fernando. Um elegante menino de doze anos, louro, fino, nervoso, montado numa reluzente bicicleta, para encantamento dos meus olhos que amavam a luz. Era o espectro do cisne, no lago de minhas fantasias.
    Vesti-me de azul, apanhei quatro margaridas - quatro são as letras da palavra amor... e fui para o portão esperar. ..
    Lembro-me: a noite estava nascendo. Do céu que se perdia, do rumor que se calava vinha chegando a sombra. a noite nascia. Era um desejo infinito de bondade, no murmúrio distante de um piano. E a minha mão cansada de impossíveis e vazios desejava repousar nas mãos cálidas do amado, do primeiro amado...
    Lembro-me do gesto, o coração palpitando, as flores (quatro são as letras da palavra amor...), o tapa, a gargalhada, as margaridas pisadas no chão...
    As palavras que Fernando gritou feriram muito e, ainda hoje as escuto, quando chego ao portão, em certa hora... parece que as escuto mais nitidamente, estirando-se como um rastro de bicicleta reluzente:
    - A pobretona suja quer namorar comigo... !
    Para lá do grande muro das restrições, fiquei no meu país de sonhos mortos.
    Fernando... Não, Fernando.
    A torneira pinga. Parece o próprio coração da noite que está pulsando... O desastre foi ontem. Desde criança, Fernando tinha a mania da velocidade. Era cisne ou lírio, porém nunca pássaro, por isso eu o amava com cintilações de orvalho.
    Sim, foi ontem o desastre. Fatal.
    Agora, dentro do meu balão solto na estratosfera, descubro que nada estava realmente morto. 
Flávia Melo
Enviado por Flávia Melo em 04/03/2009
Reeditado em 04/03/2009
Código do texto: T1469250