Seu Lugar
Passei horas olhando a carta em minhas mãos. As lágrimas, abundantes, rolavam pelo meu rosto em direção ao papel, em uma vã e fútil tentativa de limpar aquelas linhas da minha frente. Há meu amor... como, ou melhor, quando foi que tudo aquilo que passamos e sentimos se transformou nessa coisa tão horrenda que hoje você sente por mim?
Tempos cruéis e tortuosos, onde nada mais fazia sentido. Meus grandes amores, minhas vidas; minha esposa e meu amigo. Ambos haviam se afastado se juntado e por fim se afastado de mim. Eu não fazia mais parte de suas vidas, ao contrário, agora eu lhes era como uma chaga aberta, que lhes causava asco.
“Você nunca, entenda, nunca haverá de ser como ele”, ela me disse. “Nada do que você fez ou fará será tão bom quanto o que ele faz”. Cada uma dessas palavras, proferida dias antes, transmitidas por essa carta e lidas por mim minutos atrás, cada uma delas, penetrava de firme no meu coração como uma estaca ou coisa pior. Provavelmente ela não quisesse me ferir, apenas desabafar, ainda assim cada letra me matava pouco a pouco, de modo que a terminar a leitura eu não tinha qualquer outro alento que não o chão sob meus pés.
Ah chão misericordioso. Pisei-te por toda a vida e agora és o único a me socorrer e me abraçar.
Horas e horas naquele sofrer terrível, onde meus pecados se expiavam um a um, deixando minha alma corrupta fraca e vazia. Não havia mais nada ali. Nada. A casa, os objetos. Nada era meu. Tudo era ela. Ela era tudo e estava em tudo. Qual o sentido do se ter para si e não ter para alguém? Qual o sentido?
Sem escolha sai e sem destino. Abandonei a tudo e a todos. Durante dias, semanas, meses e anos vaguei. Perdido, confuso, e acima de tudo, sozinho. Sim, sozinho. Afinal, quem iria se enganar ou se punir, estando ao lado de alguém, tão algo, quanto eu?
Sei que a agora, sentado a essa praia, releio mais uma vez as linhas que você me traçou. Mesmo o tempo não fora capaz de me proteger do impacto dessas palavras. Elas ainda doem, machucam, sangram e ferem a minha pele e meu coração.
No horizonte o sol se põe. Você era uma filha do mar, você era uma cria da praia. Em suas areias enterro seu testemunho para mim e em desespero corro para seus braços, sabendo que um abismo frio e solitário é tudo que irei encontrar nas suas águas, ainda assim é lá que eu quero estar, pois é o seu lugar.