O amor
Chorava grossas lágrimas quando a vi pela última vez. Tinha o pendão para as tragédias da vida alheia e chorava-se delas como se fossem suas. Maria era alta e magra, uns cabelos negros e grossos que lhe caiam sobre os ombros com uma ou outra mexa que encobriam os olhos e com que insistência era retirada com um sopro dos lábios. Esperava os cabelos crescerem para prendê-los atrás da cabeça tudo junto num grande coque. Mas a profundeza dos seus olhos negros só era refletida na alma.
Nasceu chorando e passou a vida chorando, e agora aos 60 anos ou mais estava cansada de chorar e por isso chorava. Chorou os nascimentos dos seus 4 filhos e de todos os filhos de seus conhecidos, chorou nas apresentações escolares, nas marchas cívicas, nos passos de ballet, nos erros descompassados de vidas que marcaram presença na sua.
Quando conheceu seu marido num matine dum sábado qualquer de sua mocidade, chorou porque sabia em seu íntimo que haveria de ser aquele com quem trocaria alianças e votos, mas nenhuma lágrima. O homem não era tão bonito, mas simpático, tinha uma frieza no olhar que incutia nela o mais árduo objetivo de fazê-lo feliz. Ela achava que aquela dureza era obra de uma infância sofrida, e o marido nem desdizia, nem respondia, apenas olhava o vazio deixando uma névoa de gelo em tudo a sua volta.
O casamento correu dali 18 meses. Entrou na igreja chorando e assim o fez até chegar à nova casa.
- Você não queria casar comigo? Perguntava preocupado Ternol, ante as lágrimas incessantes da mulher.
Ternol, Ternol, Ternol. Que nome é esse que contradiz a ternura com os olhos feitos de pedra? Vai ver é esse o motivo do marido ser tão insensível. Mas não era só isso e às vezes nem ele sabia o porquê de não conseguir emocionar-se com nada, nem com as coisas que lhe diziam respeito e muito menos com a possibilidade de que um dia ela lhe faltaria. Mas ela pensava nisso com insistência e o assunto se tornou hábito diário entre os dois.
- Ternol, se eu morrer você vai chorar a minha falta?
- Sim.
“Falso!” pensava e chorava logo em seguida. –Tem certeza? Tornava a perguntar. – Sim. Respondia maquinalmente e com o pensamento nas páginas do jornal matinal. Pelo menos gostava de ler o jornal. Isso em si já era um triunfo, visto que a desconfiança de que ele não gostava de absolutamente nada, deu uma pontinha vaga de esperança no coração de Maria.
Os anos foram passando e Ternol não mudava de amores. Não trocava o jornal matinal pela conversa do café da manhã. Maria se desdobrava então em descobrir do que ele mais gostava; café bem forte, mas não muito quente com meia colherinha de açúcar branco metida antes de colocar o café, pão bem torradinho, duas fatias com uma fina camada de doce de goiaba e nada mais. Ah sim, o jornal matinal que já deveria estar a mesa quando ele chegasse. Entre um mimo e outro foram tornando-se hábitos.
Quando engravidou do primeiro filho, misturadas às lágrimas de alegria a indiferença do marido, ali presente quase palpável. Poderia dizer que o filho não era bem vindo aos olhos rijos do pai. E quando Lucas – Maria tinha a firme convicção de que dando nomes santos aos filhos, trouxesse aos pequenos a santidade e a beatitude, talvez tornasse padre! – Quando Lucas nasceu tal foi a intensidade que o recebeu em seus braços e achou-o tão parecido ao pai que a emoção tomou conta do seu coração e da sua alma, tinha certeza que exerceria nele um deslumbre divino e não o sorriso curto e sem certezas que estampou seu rosto na primeira visita ao quarto do hospital.
Maria tinha plena convicção de que o marido não choraria a morte dela.
As brincadeiras do pequeno não incomodavam o pai e também não arrancavam dele um carinho à pequena cabecinha que muitas vezes debruçava sobre o colo paterno em busca da segurança masculina tão importante na tenra idade. Maria observava tudo isso em meio às panelas do fogão e a cebola picada na pia escondiam as lágrimas verdadeiras do desgosto.
Maria só tinha esse objetivo na vida: ver o marido demonstrar felicidade, e assim ela ficaria feliz, amava-o oras bolas!
Chegou a hora de Lucas ingressar no seminário, afinal o primeiro filho Maria havia prometido a Nossa Senhora que seria o mensageiro de Deus na Terra e o filho aceitou de bom grado a saída da casa há muito tempo diagnosticada. Na despedida durante o choro incontido da mãe uma pontinha de sarcasmo no sorriso indefinido do pai. Maria chorou mais ainda.
A partir desse dia Maria invernou. Trancou em si a investida mal sucedida de fazer o marido feliz e incentivou a alma a buscar o sofrimento alheio para dar-lhes conforto e alegria juntando para si todo o pranto do mundo.
A última vez que vi Maria, esta chorava tão compulsivamente à descoberta de uma moléstia sem cura que eu achava que ela morreria na minha frente de tanto chorar. Contava-me os anos perdidos em busca da felicidade do marido que tanto amava, mas por vingança tardia, na hora derradeira não diria sequer que o amou a vida inteirinha e mesmo antes disso.
Morreu dois dias depois na penumbra do quarto sem dizer as palavras fatídicas, nem um adeus, nem uma lágrima. Padeceu as dores sem nenhuma queixa ou palavras. Não pediu ao marido que a confortasse nem disse a ele que a alma queria beijá-lo uma última vez.
O marido não saiu do seu lado até o momento do baixar as pálpebras brancas e doentes para o sono eterno. Recebeu a missa de seu filho já ordenado e o choro sentido das pessoas que conviveram com ela.
Recebeu do marido uma carta. Durante toda a sua vida não conseguiu expressar em palavras o que lhe ia no ser.
“Maria, amor de minha vida. Alma de lágrimas que não consegui felicitar. Desde o primeiro instante em que a vi dediquei todas as minhas forças em fazê-la feliz. Não consegui. Via-a triste pelos cantos a chorar, olhando para mim como uma condenação de morte. Posso dizer-te agora que comia os pães torrados com goiaba para fazê-la abrir um sorriso. Eu nunca gostei de doce de goiaba. Não acarinhava os pequenos por medo de seu ciúme maternal, você amava-os mais que a própria vida e via você lançando-me chispas quando ensaiava alguma brincadeira com as crianças. Amo-te desde sempre e sempre te amarei.Tenho certeza que você não precisa de minhas lágrimas na sua partida, mas as chorarei como sempre chorei sem você saber.”
Depositou a carta no caixão com o choro convulso dos que não conseguem prender para si o sofrimento da perda.