A VIOLETA AZUL

A VIOLETA AZUL

Josa Jásper

A violeta azul foi descoberta por Désirée em nosso primeiro

dia de namoro, no barranco íngreme da colina verde, onde nos beija-

mos pela primeira vez. Era um precipício de uns vinte metros, mas foi mais fácil achegar-me à flor do que desvencilhar-me de Désirée que,

temendo por minha queda, tentava impedir minha aventura. Decidido,

colhi a florzinha azul numa lata velha com a terra em que brotara. Minha imaginativa namorada recebeu-a em prantos e logo tomou-a

como o símbolo do nosso amor! Désirée Monclaro tinha inúmeras virtudes! Como as virtudes nunca me soaram familiares, eu, porém, não as reconhecia. Ela era um anjo até para mim, que nunca acreditei neles! Eu, diversamente dela, era, digamos, além do seu antônimo, um

homem principalmente... imprevisível. Nunca poderíamos dar certo, mas sua luz me cegava de tal modo, que eu conseguia camuflar meus defeitos, só para não perdê-la. O casamento, assim, não demorou muito...

Exacerbamente crítico, já no primeiro decênio de casados

ceguei-me completamente às suas virtudes, estigmatizando-a como mulher amarga, ciumenta, doentia, fria e indolente. Meu licencioso estilo de vida se encarregava de brindar-me com inúmeras amizades

de ambos os sexos, tão libertinas como eu. Em mim se cumpria o sábio aforisma de Boileau: "Um tolo acha sempre um outro maior, que o admira." Assim, Désirée já não me fazia falta alguma! Antes do segundo decênio de casamento, nós estávamos separados de fato. Désirée nunca desejou fazê-lo, nem de fato nem de direito, porque dizia que o casamento é uma idéia de Deus e que havia um compromisso sagrado entre nós, até que a morte nos separasse! Mas não me negaria o divórcio, desde que eu assumisse a responsabilidade pela iniciativa que, de forma alguma, desejaria que caísse sobre seus ombros. Como eu não me importava com conceitos anacrônicos como

casamento ou divórcio, mantive-a acorrentada a mim judicialmente, para economizar dinheiro a despender com advogados e processos. Já me bastavam os gastos com mulheres... Além disso, meu "status" social bem poderia sofrer algum dano com a tramitação de um processo em Vara de Família...

A dissimulação sempre fora o meu forte! Era-me fácil exibir integridade, porque eu conseguira esculpir, na mente das minhas filhas, a mesma imagem imprestável de sua mãe que a insensatez borrara em minha mente, sobre o belo quadro original dos tempos de namoro. Ninguém duvidava de que eu fosse um bom marido ou, pelo menos, um pai exemplar! Désirée, porém, mantinha-se irrepreensível! Isso, de certa forma, me irritava ainda mais! Com o tempo, porém, ela parecia render-se e adaptar-se ao nosso injusto julgamento. Afinal (coitada!), era só uma mulher atribulada contra todos nós, eu e suas filhas... Cada pessoa julgada acaba por adaptar-se ao julgamento. Sei que fui muito injusto para com ela! Sua amargura era a ausência de um lar autêntico; seu ciúme, um pedido de atenção; sua doença, manifestação dos maus tratos a que era submetida; sua frigidez, a carência de estímulos adequados; sua inércia, a tradução do seu desgosto pela vida, cuja alegria perversamente lhe roubei... Um dia, lembro-me de que Désirée me disse que supunha até mesmo ter sido desejada - como sugeria seu nome - mas nunca havia experimentado a doce sensação de ser amada!... Confesso que aquilo me doeu um pouquinho.

Sem mim, adoeceu gravemente. Quando a filha primogênita contou-me que Désirée estava morrendo, na UTI de um hospital público, fui o último a visitá-la. Peguei em sua mão e ela sorriu. As filhas não vieram. Tive medo de perguntar porquê: já me sentia bastante culpado... Désirée fixou meus olhos e disse, num sorriso desenganado: "Désirée, a Desejada!" Balbuciei, entre lágrimas: "Não, querida, Désirée, a bem-amada!" Ela estremeceu, recuou a cabeça e forçou a vista, com se quisesse guardar meu rosto para sempre... Cheguei mais perto, a um leve sinal de sua outra mão, que pendia sobre o corpo desnutrido. Tentou algo como que um beijo chocho, sem sucção e sem ruído... Sussurrou-me ao ouvido; "Traga nossa violeta azul para perto de mim!"

Corri o quanto pude. Em casa, ofegante, descobri as violetas em nosso antigo quarto, à cabeceira da cama de casal: já não era uma solitária florzinha azul, mas viçosas flores que enchiam todo o vaso! Na cerâmica do vaso havia uns rabiscos... eram letras:

E-U T-E A-M-O! Comovi-me. Quem dera se referisse à primeira violeta, estranhamente azul, que eu resgatara do abismo! Eu sabia que não. Súbita descoberta: confrontado com a pequena frase, desgraçada- mente convenci-me do quanto eu mesmo estava amando Désirée! Era-me forçoso correr para convencê-la disto!

Quando cheguei ao hospital, porém, Désirée já havia morrido. Fugi de todos, com meu vaso de flores nas mãos . Tranquei-me no escritório e chorei alto, com nojo de mim mesmo. Não fui ao enterro. Faltou-me coragem para encarar a família Monclaro. Nova insensatez! Precisávamos de apoio mútuo em nossa dor irreparável. Meu amor tardio só serviu para alimentar-me o luto!... Que desperdício!

Só após o enterro, encorajei-me a ir ao cemitério. Assim mesmo, com um amigo escritor, a quem confiei esta história que você está lendo. Ela o incentiva, leitor, a amar enquanto há tempo... Além do amigo, levei comigo o vaso de violetas. Achei que as flores deveriam ficar com Désirée. Mas, se você quiser, vá até lá e retire, do último carneiro da quadra 12 do Jardim da saudade, uma violeta azul

para para entregar a alguém que ame. Désirée já não precisa de um símbolo de amor, pois já tem o meu para sempre! Ali, você também verá uma linda placa dourada... idéia das filhas. Nela está escrito: "Aqui jaz Désirée Monclaro, exemplo de mulher, um símbolo do amor: a nossa VIOLETA AZUL!"

Josa Jásper
Enviado por Josa Jásper em 15/02/2009
Reeditado em 15/02/2009
Código do texto: T1440020