Ele deixou de chorar…
Ele deixou de chorar…
Há tempos de chegar, há tempos de partir, e ele nunca pensou que estes últimos chegassem.
Mas chegaram, de uma forma avassaladora, temível, terrível, e ele realmente só reparou quando à noite a sua habitual ouvinte pura e simplesmente que não estava lá…
Nunca soube, ou se soube escondia isso de si mesmo para não se matar mais um bocadinho por dentro, porque ela partira: eram ao mesmo tempo amantes e o melhor amigo um do outro, eram raras as discussões, tinham adaptado as poucas diferenças de personalidade às vontades recíprocas e…sim, podia-se dizer que viviam em harmonia quase perfeita ou em busca da perfeição.
Nunca tiveram a oportunidade de ter filhos, porque, embora gostassem de crianças, as respectivas profissões e um certo egoísmo fazia com que vivessem um para o outro para os amigos e familiares, não lhes agradando a ideia de distribuir afectos por mais gente…
Talvez se houvessem crianças ela tivesse ficado, mas o reino dos “talvez” era um purgatório no qual ele se recusava viver, bastando-lhe a cruel realidade de “ela já não estar lá…”
Numa primeira fase aguentou o embate duma forma que se pode dizer estóica, como se nada se passasse, mas poucas semanas depois foi o descalabro…
Retomou os hábitos alcoólicos da Faculdade e a pieguice da adolescência, entrando num estado de lágrimas convulsivas e muita bebida, derramando ambos em quantidades desproporcionadas cada vez que chegava a casa e em vez Dela tinha garrafas e recordações.
Meteu baixa médica no serviço, e como era chefe as coisas tornaram-se fáceis, demasiado, pois deixou crescer a barba enquanto bebia e chorava, decidiu adoptar uma dieta de comida de plástico, engordando enormemente no espaço de poucas semanas, e passou a sair todos os dias à noite, de bar em bar, de discoteca em discoteca, tendo algo que nunca tivera, sexo casual com mulheres que de manhã nem sequer sabia o nome, nem queria saber, porque procurava no corpo delas o desejo e o olfacto do corpo Dela, que desaparecera para sempre.
Familiares e amigos mostraram-se preocupados, mas sabiam que nada havia a fazer, pois ele era dono e senhor da estrada por onde andava, e uma mudança de rumo dependia apenas dele…
Obcecado ainda a procurou nos locais virtuais de sempre, pois ela não desaparecera de todo, mas ao contrário do afecto, do amor antigo, encontrou uma frieza que o chocou, um formalismo típico de conhecidos e não de amantes, obrigando-o a chorar mais e a confundir as lágrimas com a bebida, de tal ordem que ele julgou que esta seria a sua vida para sempre, embora no seu intimo não acreditasse que este inferno, esta tortura se prolongassem por muito mais tempo…
Julgava ver o mundo através dela, que ela era tão cristalina como os sentimentos nutridos, mas enganara-se, e bem…
Foi então que um dia acordou diferente…
Novo corpo a seu lado, que mal despertou o olhou com olhos alcoolizados e com uma apatia típica de sexo sem nexo, saindo bem depressa da casa dele e da cama que ainda era Dela.
Ao invés de se ficar a torturar, de procurar de imediato uma cerveja no frigorífico, ele foi à casa de banho, lavou-se e fez a barba. Como um autónomo ligou para a sua secretária a pedir-lhe para anular a baixa pois iria trabalhar no dia seguinte. Depois passou as horas restantes a rasgar as fotografias onde ela estava, a apagar no computador os locais onde a poderia encontrar, colocou toda a bebida no lixo, foi às compras e pela primeira vez em muitos meses comeu uma refeição decente acompanhada por um sumo natural, e à noite foi ao cinema ver um filme daqueles que se esquecem num instante, enquanto se enchia de pipocas e de riso, pois apesar da comédia ser parva, pura e simplesmente que lhe deu para rir.
No dia seguinte passou por uma florista e comprou uma flor para cada uma das subordinadas, entregues com um sorriso, trabalhando de seguida como se aqueles meses de ausência não tivessem existido.
Depois convidou a sua irmã e a família para jantarem fora, divertindo-se à brava com os sobrinhos ante a estupefacção dos pais, que reconheciam a pessoa que ele tinha sido, mas que ignoravam como tinha voltado de um dia para o outro.
Não, não a esquecera, isso demoraria ainda muito tempo e se calhar outro “para sempre”, mas decidira que era chegada a altura de mudar, de reencontrar a felicidade perdida quando ela saiu pela última vez do apartamento deles.
Não sabia se voltaria a amar alguém, isso fazia parte de um futuro que o animava estar à espera dele algures, mas o facto de tudo estar por contar o estimulava.
Descobrira que as lágrimas secam, que as memórias encarquilham, mas não a alma, pois a alma deve ser eterna, a alma não deve possuir as amarras que ele lhe impusera naqueles meses de agonia.
Provavelmente nunca saberia realmente o que se passara com ela, mas isso já não o importava, ele errara, como todos têm o direito de errar, mas também descobrira que se a eternidade pode esperar por nós, a vida não, e ele o que queria agora era viver em paz e na felicidade que reencontrara quando
Ele deixou de chorar…