HOJE EU TE VI PASSAR

HOJE TE VI PASSAR

Marcial Salaverry

Por mera obra do acaso, tive hoje uma melancólica lembrança do passado, ao cruzar com uma figura triste, com a expressão de quem já desceu quase todos os degraus da vida, chegando naquele ponto de onde não mais existe volta. Apenas uma saída. A porta para o Além.

Seu porte, outrora altaneiro, de moça fina, de família de recursos, estava alquebrado, vencido pela vida desregrada, pelo uso de drogas, pelo fumo, pelas bebidas... Enfim, o verdadeiro fim da picada. O quadro desenhado no tango “Esta Noche me Emborracho”.

Não consegui fugir das recordações que me assaltaram a mente.

E pensar que muito a amei. E lembrar os doces momentos que passamos juntos. Como doem essas recordações. E a busca das explicações, como se para a vida explicações houvessem. Simplesmente certos fatos acabam acontecendo porque acontecem.

Éramos namorados. Para a época, nosso namoro era muito avançado. Não tínhamos limite para nossas intimidades. E foi essa liberdade, ou melhor, essa liberalidade que causou tudo.

E aquele baile de formatura. Triste baile.

Ela queria ir sozinha. Não me queria naquela noite, depois vim a saber o porquê. Quando descobri, saí a campo para arrumar um convite. Queria surpreendê-la, e o consegui.

Não esqueço sua expressão de surpresa quando me viu entrando no salão, impecável em meu smoking alugado. Sorriu-me. Magoado, fiz que não a vi, e comecei a dançar com outras, fazendo par constante com uma moça que conhecera lá. Reparei que ela não dançava com ninguém, e apenas me olhava.

Apenas no fim do baile, empertiguei-me e fui tirá-la, mas ela, olhando tristemente, recusou-me e saiu... Nunca mais a vi... Fiquei muito ofendido com a recusa, e não a procurei mais.

Depois vim a saber dos fatos. Ela estava suspeitando estar grávida, e queria conversar com algumas amigas para ter certeza. Quando soube, uma das amigas disse-lhe que eu não mais a procurava porque estava sabendo de tudo, e não queria saber mais dela, por estar grávida. Bela amiga... Desesperada, e com vergonha de encarar seus pais, fugiu de casa e caiu no mundo, e na vida.

Nunca mais soube dela, e pensar que essa mesma amiga disse-me que ela havia fugido com um namorado. Jamais soube o que realmente aconteceu. E tampouco procurei saber.

Apenas a reconheci naquela noite, porque sempre a tive em um cantinho da memória. Seus olhos eram inesquecíveis, bem negros, brilhantes, fogosos. Negros ainda estavam, mas o brilho, o fogo, completamente apagados. Chorei muito, perdido nas recordações, e em como podem ser estranhos os rumos de nossa vida. Amamo-nos, mas ela seguiu por um rumo, e eu por outro. Poderia ter sido diferente? Claro, se ela tivesse me dito tudo, ou se eu tivesse confiado mais, ou se ambos não tivéssemos sido tão orgulhosos, cada qual julgando-se magoado, assumindo postura de vítima, e, principalmente, se aquela amiga não tivesse sido tão “amiga”.

Enfim, coisas da vida, que nos prega peças as mais loucas possíveis.

Seu nome? É lembrança, mera lembrança daquilo que poderia ter sido, daquilo em que se transformou...

Bem, na verdade, ouvi esta história em um desses papos de botequim, quando alguém precisa falar, e alguém gosta de ouvir, para contar depois.

Nomes? Para que? Quantos de nós conhecemos muitas histórias semelhantes, em que tristes fatos, em que vidas podem ser destruídas apenas porque não houve um melhor entendimento. Em que as pessoas se deixam levar pelo orgulho, pela vaidade. Quando se prefere ouvir inverdades, porque a verdade talvez nos incomode.

A história desses dois poderia ter sido muito diferente. Apenas coisas do destino? Não creio que se possa atribuir ao destino certas falhas de nossa personalidade.

Sinceramente, espero que a história de duas almas sofredoras possa servir como alerta, lembrando que a melhor maneira de se dirimir dúvidas, é através do diálogo. Conversando é que se entende, ou não... Mas de qualquer maneira chega-se a melhores conclusões.