Clara e o Príncipe

                                          Citação

    "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou;ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com seus mitos, suas legendas, seus encantamentos..."
                                                         (Joaquim Nabuco)
 
     

    A chuva passou. Ainda bem. Tomara que a viagem seja sem tempestades. Com a aproximação da nova estação, as serras ficam vulneráveis a temporais. Uma hora e meia, às vezes duas horas de viagem, só de ida, para chegar à universidade em Nova Friburgo. Na volta, a distância ainda parecia maior, pois o cansaço fazia-se presente nos estudantes.
    Clara acabou de se certificar de que a sombrinha estava dentro da bolsa. Que dureza! mas o ônibus não deve demorar. O dia fora longo, acumulando horas de trabalho e de estágio. Bom lembrar que a formatura se aproxima.
    Viajar neste horário apresenta uma vantagem: a transição da tarde para a noite vai , aos poucos, tingindo o céu , durante o trajeto, com inesperadas pinceladas de cores inesperadamente belas. Clara gosta. O belo sempre lhe provoca sensações agradáveis. A Harmonia toca-le a emoção.
    Susana estava com Marisa e Alberto logo depois da cabine do motorista. Eles chamaram a atenção de Clara para a aglomeração lá fora, na estrada.
    - Olhe, Clara, parece o carro de Eduardo, disse Alberto.
    - É de Cordeiro, disse Susana assustada.
    - Ele deveria estar correndo, acrescentou Marisa. Aqui no Véu da Noivas é tão raro acontecerem acidentes!
    O ônibus passou devagar, Clara pôde ver que não havia mais ninguém no carro, porém, reconheceu, pelos detalhes do interior: era o carro do Edu.
    Muito se comentava no ônibus, as vozes eram abafadas pelo barulho do vento, havia um rádio ligado, Clara não entendia mais nada direito. Onde estaria Edu? Como obter notícias de seu vizinho?
    Clara e Eduardo cresceram praticamente juntos. Apesar de todas as diferenças que a situação socioeconômica lhes impunha, moravam na mesma rua. Ele, na casa maior, mais confortável, a mais bonita de todas. Ela, em casa humilde.
    Havia olhares, passavam um pelo outro. Eduardo cuidava para que não fossem demorados. Dependesse de Clara e eles se olhariam por tanto tempo quanto fosse possível.
    Ultimamente, era muito raro se encontrarem. Ele, sempre de carro pelas ruas, passava só alguns fins-de-semana na pequena cidade, Os amigos atuais, amigos de faculdade, eram de São Paulo. Filho único. Amadíssimo. Clara, igualmente amada, tinha um irmão mais velho que ela e uma irmã, a caçula.
    Estranhamente agora, dentro do ônibus,  lembrava-se de como começou a demorar no banho mais do que todas as pessoas da casa: pegou mania de esfregar muito a pele e com muita força. No dia em que acordou para o fato de que fazia aquilo na tentativa de ficar com a pele tão branca quanto a de seu vizinho, chorou. Teve medo. E amou Eduardo ainda mais por essa diferença. Quem é capaz de controlar os impulsos de um coração jovem? Clara, certamente, não era. 
    Assim que chegou à faculdade, a moça procurou um orelhão:
    - Alô, mãe? Está tudo bem?
    - Alô, minha filha. Aqui em casa, tudo bem. Mas a rua está em pânico. O Edu sofreu um acidente e parece que está bem machucado. Dona Heloísa, coitada, já foi para aí com Seu Plínio.
    - Puxa, mãe, então foi mesmo o carro dele que vi na estrada.Você sabe em que hospital ele está?
    - Não, não sei.
    - Eu vou procurar saber. Fique calma, mãe, beijos.
    No decorrer do período de aulas, ela conseguiu, realmente, saber onde ele estava internado. Mas não pôde ir lá. Perdera o ônibus e não teria como voltar a casa a tempo de dormir um pouco antes de trabalhar.
    Na viagem de volta, ouviu Susana contando a quem interessava que o acidente tinha provocado ferimentos na cabeça .
    Clara, de tão assustada, não conseguia falar. Rezava, em silêncio.
    Foi longa a viagem de volta. Já no trajeto de casa, ouvia seus passos ecoarem tão alto que, por pouco, não acordavam o mundo.
    Clara chegou, trocou algumas palavras com a mãe, que a esperava, mas estava exausta. Dormir, mesmo, quase não conseguiu. Em sua memória, ouvia:
    - Dudu, vim trazer o pé-de-moleque que minha mãe fez. Eu sei que você adora. Estes são seus.
    - Mãe! A filha da empregada de Dona Eunice trouxe pé-de-moleque para você. Venha aqui pegar!
    - Obrigada, minha filha. Agradeça a sua mãe por mim.
    Naquele dia, a menina de doze anos chorou tanto, que só chegou a uma conclusão: a vida é muito ruim.
    Hoje farei uma visita a Eduardo. Foi a primeira coisa que Clara pensou, quando acordou.
    Trabalhou normalmente, mas não haveria estágio. Assim, pôde ir para Nova Friburgo logo depois do almoço. Lá, pegou outro ônibus e foi para o hospital.
    Dona Heloísa e o Senhor Plínio receberam-na com muita simpatia, embora não conseguissem esconder a tristeza. Outros exames ainda precisavam ser realizados, mas, até agora, tudo indicava que o rapaz ficaria cego. Clara recusava-se a acreditar. Não se concentrava em nada. Eduardo... cego? Recusou-se tanto a me olhar. Ele queria, mas não olhava. Era a cor. causava-lhe uma certa repugnância. era flagrante. Agora, só as trevas. Por quê? Por quê? Trevas.
    Naquele dia, não conseguiu prestar atenção às aulas.
    Depois de alguns dias, Eduardo voltava para casa. Irremediavelmente cego. Clara foi visitá-lo a primeira vez. Conversaram sobre amenidades. Ela diria, tranquilamente, em visitas posteriores:
    - Jamais deixarei de estudar. Os cursos que venho fazendo conferem-me uma dignidade inabalável. Reconciliam-me com a vida. Depois que me formar farei pós-graduação, mestrado, doutorado, o que aparecer.mas também vou trabalhar. Não quero mai sacrfícios de minha família.
    - Clara, você me deixaria ajudá-la? - Perguntou Eduardo.
    - Não é necessário, obrigada. Sei todos os passos que devo dar . Conheço o mapa. Avançando palmo a palmo, pacientemente, chegarei ao que pretendo.
    Os olhos dele estavam sempre voltados para o infinito e Clara tinha a sensação de que sempre os vira assim.  Sem encará-la. Era de propósito, pensava ela. ele não queria mesmo vê-la. Só ouvi-la. Cego porque queria. Para que tanta soberba ? Seus amigos e todas as suas amigas, principalmente as lindas e louras. Eu fiquei e minha pele é negra. Agora não adianta mais? 
    - Edu, Dona Heloísa trouxe suco de morango. Parece delicioso. Pegue seu copo. Com a mão direita. Isso. Tome. 
    - Amanhã você voltará? 
    - Amanhã não poderei. Aliás, só poderei voltar no sábado. Tenho prova a semana inteira. Se obtiver nota  setenta ou maior em todas as matérias, só precisarei retornar em agosto. Todo o mês de julho será de férias... da faculdade, apenas.
    -Que faremos no sábado? - Perguntou Eduardo.
    - Vamos sair um pouco? Uma lanchonete com música ao vivo é um programa alegre, não acha?
    - Não, ainda não quero sair. Não me sentiria bem se as pessoas começassem a fazer perguntas.
    Clara aquiesceu.
    No sábado seguinte, estava na casa do amigo outra vez. Falaram sobre seu sucesso nos estudos, leram trechos de uma tragédia de Shakespeare, lancharam, riram. Os dias que decorreram configuraram-se como um idílio.
    Os pais de Eduardo aprovavam a nova amizade. Clara era inteligente, dona de uns olhos sempre vivos e muito negros. Sua perspicácia proporcionava-lhe oportunizar situações que anulavam quaisquer desgastes emocionais, enquanto ela e Eduardo compartilhavam almoços, tardes, pores de sol. O rapaz, atualmente, via o mundo através dos olhos de Clara. Como eram olhos alegres, , alegre era o mundo que se abria para a escuridão de Eduardo. 
    A moça, entretanto, não se esquecia da tentativa de diálogo , há alguns poucos anos:
    - Oi, Edu! Ela estava realmente feliz com o encontro inesperado. Acabara de saber de sua boa classificação no vestibular e queria compartilhar sua alegria com o amigo, além de querer saber do resusltado dele.
    - E então, passou? Eu...
    - Passei, respondeu apressadamente. Estou com pressa. Até logo.
    O resto daquele dia, para ela, teve gosto de decepção. Não conseguia nem comemorar sua vitória. O desprezo com que fora tratada causava-lhe aperto no coração e a garganta engasgava. Ele não a considerava gente. Era, para ele, um ser de quem deveria se desvencilhar o mais rápidamente que pudesse. Só que esse ser o amava. Desde há muito e, cada vez, com mais intensidade.
    O frio daquela tarde de julho convidava a um bom chocolate quente, com cobertura de creme e acompanhadao de biscoitos amanteigados. Clara e Eduardo levantaram-se, ela o guiou até o jardim, onde o sol demorava a se pôr. Passeavam sob os raios, de braços dados e sorriam, os dois, até que a moça olhou-o fixamente. Estava séria e ofegante. O rapaz sucumbiu ao convite de seu hálito morno. Beijaram-se. Ternamente. Deliciosamente. Do jeitinho que Clara, desde que se entendia por gente, imaginava.
    O amor renovava o humor do rapaz. Não havia mais momentos de depressão, mesmo quando ele estava só. Preenchia seus momentos de solidão com a expectativa da chegada de Clara.
    O dia da formatura se aproximava. Clara convidara Eduardo. Ele recusou-se a comparecer, alegando que ainda não queria sair de casa. Clara insistiu, com uma tristeza emudecida mas percebida pelo arrefecimento de seu entusiasmo. Clara insistiu. Ele lançou a proposta:
    - Vamos comemorar sua formatura aqui em casa. Reunimos nossos pais e seus irmãos, compartilhamos um bom jantar, trocaremos alianças de noivado e nos divertiremos em família. Que tal?
    - Ela respondeu que pensaria.
    Pensou.
    Pensou.
    Pensou.
    Por mais que evitasse, chegava sempre à conclusão indesejada: Eduardo envergonhava-se dela. Não queria ser visto em público com ela. Antes que se sentisse pior, foi logo procurando se desapegar, aos poucos, do namorado. Namorado? Noivo? Nada! Nada mais! Ela estava se sentindo usada por ele e iria usá-lo agora, por quanto tempo quisesse, até que o encanto acabasse.
    Em outubro, ela tirou um dia para si mesma. Foi à embaixada, agendou compromissos.
    Chegou, enfim, o dia da formatura. Clara estava linda. Finamente vestida e penteada, discretamente mquiada, usava o melhor perfume a que conseguiu ter acesso. Ele combinava com sua tez marrom e seu sorriso sedutoramente branco. Um sorriso que Eduardo jamais vira. Na verdade, ninguém mais o veria.
    Clara tirou fotos com a família, em casa. Foi à casa de Eduardo e tirou fotos com ele, sua família e ganhou um lindo buquê de rosas assustadoramente rubras. O rapaz foi seduzido também pelo perfume e pediu que ela não se demorasse na cerimônia. Clara respondeu:
    - Fique sossegado. Sorria, enquanto falava. Farei apenas o que tenho que fazer. Tudo.
    A cerimônia transcorreu normalmente. Discursos, agradecimentos, homenagens.  Dona Isadora, mãe de Clara, chorava muito. 
    Dentro do carro, a caminho do aeroporto, já no Rio de Janeiro ela perguntou:
    - Tem certeza, minha filha?
    Clara não conseguiu responder. Mas estava segura. Sustentou a resposta com um olhar.
    Eduardo não entendia nada. Por que a namorada demorava tanto? O jantar festivo esperava. O par de alianças, ele, sua família e...  esta ausência de notícias! Que acontecera?
    Impacientou-se. Esmurrou algumas portas, derrubou cadeiras, esbravejou. Dona Heloísa tentava acalmá-lo. Afinal, podia ter acontecido algo desagradável.
    - Ninguém brinca assim com Eduardo Cândido Portugal! Principalmente uma...
    A campainha tocou. Dona Isadora entrou na sala. Eduardo recebeu-a grave, cortês, comedido. Ouviu tudo. Esperou que ela saísse, chorou no colo da mãe e do pai. Convulsivamente. Desesperadamente.
    Dona Heloísa levou-o para o quarto, no segundo andar da mansão. Enxugou-lhe as lágrimas e, supondo que dormira sob efeito do remédio, saiu.
    Eduardo levantou-se pouco depois. Esbarrou em alguns móveis e em algumas paredes. Tateando, achou a janela. Abriu-a. Jogou-se: trauma raqui-medular.
    As famílias dormiam profundamente.
    Clara ainda não voltou ao Brasil.
    Eduardo jaz em túmulo esculpido de granito.
    Negro.









Flávia Melo
Enviado por Flávia Melo em 29/01/2009
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