Um encontro no ônibus

Em uma noite de luar estava eu ali em uma rodoviária.

Um pouco distante de casa, mais de seis horas, mas me sentindo segura e em paz.

Acabava de ter passado um final de semana com minha melhor amiga. Dois dias pareciam uma vida inteira, esse é o pagamento da intensidade. Somos inteiras e grandiosas do começo ao fim. De tudo teve; tratamento de beleza em casa, ai que vida essa, teve e dos bons; café da manhã na padaria cara, teve; passeio na 25 de março do Rio, teve; piercing no nariz, com direito a choro, teve sim senhô; Macaranã lotado, com direito ao Flamengo perdendo para o Galo, vixi, se teve; vômito; baladinha; cerveja; sono; sol; filme; choro; riso; cervejas; amigos; filmes; risadas.

Essa cumplicidade, essa tranqüilidade, o legado da paz do regaço é que me fez ter um final de semana tão gostoso e chegar àquela rodoviária como se estivesse em casa. A paz, a verdade, a amizade, faz do mundo um aconchego.

Sem livro, sem comidinhas para beliscar, com uma pequena mala e uma bolsa de mulher, sentei-me na poltrona 8 (poltrona com visão panorâmica da viagem, e no corredor). O desejo era apenas de que chegasse logo o ser da cadeira 7, assim eu dormiria.

― Você me dá licença? – falou um ser de cachinhos, com cara de bicho grilo, vestia uma camiseta branca, tinha várias sacolinhas na mão, parecia esta voltando de uma feira onde se ganha muitos brindes esportivos.

― Claro – falei já levantando, ficando ali de bunda grudada no vidro para ele passar.

Ele jogou uma sacolinha por vez, eram três, jogou as blusas e só então passou.

― É melhor entrar por partes aqui.

“Saco vou ter que conversar com alguém, até porque, sei lá porque, com esse eu quero conversar”

― Um sistema de encaixe, você consegue.

― Nossa de onde vem esse frio?

― Esse frio vem aí do seu lado.

― Onde?

Me torcendo um pouco e colocando o braço quase no nariz dele, coloquei a mão na lateral, encostada no vidro de onde sai aquele ar monstruoso desses ônibus 1001. Ele colocou a mão no lugar, encostando na minha.

― Sentiu agora?

― Nossa como é forte esse ar. Eu não senti na vinda porque estava ai na sua poltrona.

― Eu vim sozinha aqui na frente, então fiquei pulando de um lugar para outro. Hoje vou ter que ficar quieta, não poderei pular em cima de você.

“Ai Léia sua anta olha o que você falou? Caracas! O moço está até sem graça olhando pra fora agora”

― Qual seu nome?

― Alberto e o seu?

― Léia.

― Prazer em conhecer.

― Ainda não sei se é um prazer conhecer você.

― Como? – ele ficou em choque deu para ver.

― É que ainda não sei se é um prazer, simples assim. Mas tudo bem, vou dormir com você e então saberei.

― O quê? – ele parecia estar desacreditado.

― Vamos dormir 6 horas nesse ônibus e então depois disso te digo se é ou não um prazer.

Ele sorriu aliviadamente. Voltava da meia maratona do Rio, e também da cada dos avôs. Fez a corrida em menos de 2 horas. É mineiro, tem um sotaque lindinho do interior, é simpático. Comeu todo o lanchinho dado no ônibus, me deu a balinha de morango, eu não tinha pegado lanchinho.

Ja fazia uns 20 minutos que estamos na estrada, havíamos falado sobre várias coisas, quando eu vi a lua. Ela estava ali logo a nossa frente, mas precisei arrumar o sapato para perceber que o brilho que eu via só um pedaço era dela, da lua.

― Que lua linda está – falei assim encantada.

Ele curvou-se pra frente e ficou olhando junto comigo.

― Linda mesmo.

― Você já reparou que a lua tem carinha e boca?

Foi automático o movimento de olhar para mim e ficar com cara de bobo.

― Nunca.

― Mas consegue ver que tem? Está ali de ladinho, meio viradinha.

― Nossa! Eu consigo ver sim.

― Ninguém nunca viu a carinha da Lua junto comigo.

Olhamos uma para a cara do outro, ficamos alguns segundos curvado para frente, já não era mais a lua o motivo. Respirei, contei até três e voltei a encostar-me.

Até esse momento estávamos com as poltronas sentadas, todos já estavam deitados. Tirei o sapato, me cobri. Ele colocou duas blusas, uma era vermelha e tinha um capuz caído nas costas. Deitamos.

― Acho que vou sentir frio nos pés.

― Coloque a bota.

― Eu queria ficar mais a vontade.

― As mulheres são complicadas.

― Os humanos são complicados.

― Sim, feliz sim.

― Não sou muito normal.

― Graças a Deus! Eu também não sou.

Ele mora em São Paulo pelo mesmo tempo que minha amiga mora no Rio, três anos, fez educação física em Minas e mudou para São Paulo por motivos acadêmicos, fez especialização e agora está iniciando o mestrado. Trabalha pela manhã na Alameda Santos, treina pessoas da Yakult, treina também triathlon na Usp aos sábados. De tarde estuda, de noite também. Agora ele sabe a diferença entre Marketing e Publicidade. Tem um sorriso lindo.

Fechamos os olhos. Eu abri, resolvi olhar para ele, fiquei ali viajando. Ele abriu e me olhou. Fechamos os olhos.

― Você está dormindo? – perguntei ainda de olhos fechados.

― Quase.

Silêncio e novamente a brincadeira dos olhos. Dormimos.

Acordei com a cabeça no ombro dele, a perna esquerda dele estava sobre a minha direita. Dormi novamente.

Acordei. A Lua estava na janela, brilhava absurdamente e ele parecia estar cheirando a Lua, ela estava bem na ponta do nariz. Dormi.

Acordei. Eu estava retinha. Ele estava com os cachinhos encostando no meu cabelo. Dormi.

Acordei. Virados de lado, os dois. Virados para o lado do meio. Cara com cara. Cachinhos com minha franjinha. Senti a respiração dele. Ele abriu o olho.

― Oi – disse eu, sem saber o que fazer.

― Oi – ele disse, com um sorriso suave. Dormiu.

No momento da parada, levantei para ir ao banheiro, quando voltei, ele estava meio acordado. Sorriu um sorriso bonito, ficou olhando eu sentar, fiquei olhando para ele. Nenhuma palavra, apenas olhares de sono.

Me fiz de dormindo e fiquei ali olhando ele se mexer, quase sempre ficando mais perto de mim.

“Certamente ele está acostumado a dormir com alguém, ou sente falta disso”.

Novamente o rosto colado no meu. Caminhos sem fim, brilho nos meus olhos, a lua também, ele ali, um cheiro doce de sei lá o que. Dormi.

Acordei com o braço enroscado no dele.

“Cacete Léia o que é isso?”

Quase chegando a São Paulo, apaguei.

Acordei dentro da Rodoviária ouvindo ele:

― Chegamos.

Como sempre acordo zureta, acordei levantando de uma vez só.

― Qual seu telefone?

― 8141...

“É Tim, é Tim!!! Vou ligar quase de graça”.

― Me dá um toque para que eu tenha o seu.

“Que fofo ele também quer meu telefone”.

Dei o toque. Ele sentiu vibrar.

Sem esperar por ele virei e saí.

― Agora sim eu digo que foi um prazer conhecê-lo.

Sorrimos.