O beijo roubado

Na cobertura do Edifício Paradises, Edmundo Ortega apreciava lentamente as estrelas, o terceiro on the rocks e o final de um charuto. Só lamentava não ser cubano. O charuto, claro. Mesmo assim, tinham o gosto peculiar. Edmundo e o charuto.

Ritual particular das noites de sexta-feira nas últimas semanas, era um dos poucos refúgios em que ele encontrava prazer após intragáveis reuniões de negócios, jantares e coquetéis insossos com amigos idem e viagens para lugares onde sempre há um puxa-saco de sorriso falso de plantão. Mas tais coisas não existiam nas noites de sexta-feira. Gostava de apreciar os prazeres que julgava serem de todo homem normal, os solitários, e sentia como se naquele momento conseguisse relembrar o verdadeiro homem que era, o homem que fora no passado e o homem que gostaria de ter sido um dia.

Geralmente, era depois de pouco tempo que as coisas começavam a acontecer. Apesar do negrume do céu pontilhado de pequenas luzes, o que Edmundo via a sua volta era um céu azul claro de um dia ensolarado. Ao redor, não era um apartamento que o rodeava, mas um parque esverdeado repleto de vida. Também não ouvia o vento trazer os sons de motores e buzinas espalhados pelas ruas abaixo, mas gritos de crianças brincando e até, quem sabe, um cão a latir.

Piquenique escolar. Mil novecentos e... não importa. Fazia um bocado de tempo. Ele olha para o lado e vê o gordo Raul correndo inutilmente para alcançar os garotos que tomaram o seu boné. Mais adiante, meninas brincam de pular-corda. À frente, as professoras arrumam sob a frondosa sombra de uma árvore, toalhas repletas de frutas, bolos e garrafas de refrigerante de groselha, enquanto ralham vez por outra com alguém. É quando Edmundo, agora Édi, sente duas mãos taparem os seus olhos.

- Advinha quem é?

Seria fácil demais responder, então prefere brincar: - Se conseguir adivinhar, o que eu ganho?

- Faço com você algo que ninguém mais pode fazer.

- E como vou saber que você não tá mentindo?

- Vai ter que confiar em mim.

- Tá bom, pra mim é a Jéssica.

- Acertou, seu bobo. Também, depois de tantas dicas que dei você não erraria nunca!

Jéssica era a amiga ruiva dele. A melhor - ou a única amiga da sala de aula, talvez da escola toda - já que ele não era lá tão sociável. Enganado pelos pais, ele ainda acreditava que ia para a escola só para estudar. Foi Jéssica que ensinou o que era convivência. Ao menos, a convivência, com ela. No pequinique, ela usava uma blusa branca e A saia xadrez, além de meias brancas que iam até o joelho e rabo de cavalo. Édi era vidrado naquela saia, pois quadros em tons de cinza contrastavam com a tez da pele dela. A sobreposição caleidoscópia de quadrados pequenos dentro de grandes exercia um efeito hipnótico tão grande nele que vez por outra ela percebia o seu olhar fixo na saia tentando escapar daquele labirinto. E ela ria. Como Jéssica ria. Além da saia xadrez, o que ela tinha de melhor era o sorriso. Era praticamente impossível ficar bravo ou “de mal” com ela após ouvir ela rindo. Edmundo guardava todas aquelas risadas.

- Vem comigo, Édi – Jéssica disse, puxando-o pela mão.

- Aonde?

- Ué, você não quer o seu prêmio? Vou te dar ele agora.

- Mas o que é?

- Você já vai ver, é surpresa.

Ele a seguiu curioso, ansioso, submisso. Afastaram-se dos outros até uma clareira em que ninguém os via. Ele disse que as professoras mandaram ficar à vista e provavelmente iriam brigar. Ela o convenceu dizendo que o prêmio valeria a pena. Pararam atrás de uma árvore, o coração de Édi acelerava por estar fazendo algo escondido, com a Jéssica, sem nem ao menos saber o que era. Mas suspeitava o que poderia ser.

- Feche os olhos e não abra até eu mandar.

- Por quê?

- Porque senão você não ganha o prêmio! E não vale espiar que eu estou de olho.

- Tá bom – fechou os olhos enquanto ela soltava a mão.

Ele ouviu barulhos em arbustos, como se ela estivesse ocupada com algo. Sentiu-se nervoso, pois já sabia, na escola, o que os meninos e meninas faziam quando sozinhos. Eles se beijavam. Apesar dos adultos amaldiçoarem que dava sapinho, e dele nunca ter beijado antes, ficou na expectativa de receber como prêmio um beijo da sua amiga. Mas, se assustou quando ela pegou em suas mãos novamente. Ambos estavam ofegantes.

- Não abre até eu mandar – repetiu, como se ele não a obedecesse sempre.

A respiração dela foi ficando mais próxima, e Édi sentiu o hálito quente no rosto. Havia também o perfume de morangos no ar. Mesmo aguardando, receou sutilmente ao sentir o toque suave nos lábios. Naquela hora, ele era todo excitação, alegria e descobrimento. Lembrou que bateram os dentes na primeira tentativa, e deu um sorriso nervoso. Depois, fluiu naturalmente. Parecia que aquelas duas bocas infantis se encaixavam com perfeição. Ela colocou os braços ao redor do pescoço dele e ele a abraçou pela cintura. Foi o seu primeiro beijo. Durou agradáveis e eternos quinze segundos. Durou até ele abrir os olhos e ver que não era a Jéssica quem o beijava. Era Magda.

- O que é isso?! – afastou-se olhando ao redor. Jéssica assistia a cena parada um pouco atrás.

- Você conhece a Magda, não?

Claro que conhecia. E compartilhava a opinião do restante dos meninos que ela era a menina mais estranha da sala. Usava óculos com lentes grossas que deixavam os seus olhos enormes e duas maria-chiquinhas de algum desenho popular entre as meninas. Usava roupas iguais as da diretora, só que em miniatura. Era sempre ridicularizada, e por isso vivia quieta no canto da sala, perto da professora. E Édi estava beijando ela, logo ela. Olhou para Magda, com os olhos pequenos piscando rapidamente, provavelmente tentando enxergar algo. Jéssica passou os óculos, e ela os colocou em seguida. Ele não sabia o que falar. Realmente era uma surpresa. Ninguém mais na face da Terra poderia fazer aquilo com ele. Ensinar o que era um coração traído. Olhava para uma e para outra e os olhos se encheram d’água.

- A Magda me confessou que gosta de você – Jéssica tentou justificar.

- Mas eu não gosto dela! – ele respondeu segundos antes de sair correndo de volta ao piquenique.

Ele não queria que elas o vissem chorar. Mas mudou de direção no meio do trajeto, pois tampouco queria que os outros vissem. Agachou atrás de uma grande pedra, quando ambas passaram por ele.

O primeiro beijo, aquele que era para ser da garota da saia xadrez, fora roubado. Meses depois, a família de Jéssica mudou-se para o nordeste e eles não se viram nunca mais. Mas a amizade já tinha esfriado. Ela ainda tentou explicar-se diversas vezes, mas ele insistia em correr para o banheiro. Magda continuou estudando na mesma sala que até terminarem a quarta série. Nunca mais o olhou nos olhos dele, pelo menos não que ele tivesse visto. Ninguém nunca soube do ocorrido. Talvez, enquanto Édi considerava o episódio com vergonha se alguém descobrisse, as garotas o tratavam só como um segredo entre amigas.

Anos depois, Edmundo encontrou Magda em uma festa. Tinha mudado, usava lentes e estava extremamente atraente. Ele não a reconheceu de imediato, mas ficou encucado com a estranha exuberante que não parava de olhá-lo e sorrir. Ela se aproximou e se reapresentou. Beberam alguns drinques juntos e relembraram os episódios da infância, inclusive o do beijo. Ela confessou que aquele também foi o primeiro beijo dela e que ela pensou que ele o usaria contra ela. Mas não, ele foi um verdadeiro cavalheiro. A conversa estava animada quando Magda resolveu ir ao banheiro. Edmundo olhava a bebida no copo e pensava como o mundo dava voltas, quando sentiu duas mãos tapando seus olhos e reavivando a memória.

- Adivinhe quem é que você ganha um beijo.

O coração dele parou, por um instante. Era a voz de Jéssica. Sem pensar, sem mesmo olhar, virou-se com rapidez e beijou quem quer que estivesse ali, fosse ruiva, míope, com ou sem saia xadrez. Desta vez, quem roubaria o beijo seria ele.

- Amor, vem pra cama, vem! No que você está pensando enquanto admira as estrelas?

- Em você, minha querida, em você. - respondeu Edmundo com um sorriso maroto.