Maria Morena
Faz tempo que quero contar esta história. Busco nas formas - a melhor; a mais linda e poética que se possa existir, na minha realidade de escritora amadora, para escrevê-la. Preparo o ambiente. Estou ouvindo a Jessye Norman. Escolhi esta trilha sonora como fundo musical. Já Ouvi também "Una furtiva lágrima" na linda voz do Pavarotti. Elejo estas canções como as mais perfeitas para este momento. Não me perguntem por qual razão. Mas, música faz isto comigo. Me inspira das maneiras mais inusitadas que se pode imaginar. Respiro fundo...
Sei que daqui para frente viverei emoções fortíssimas...
O dia está propício. Uma chuva fina e persistente cai lá fora. Acordei nostálgica. Considero hoje a vida muito bela !
Como bela foi a vida da Maria, a Vicentina. Nascida no sertão mineiro, no mês de julho, a segunda filha da Dona das Dores e do Senhor Sebastião Joviano. O nome, uma sincera homenagem à São Vicente de Paula. As denominações filiais por parte da dona das Dores sempre muito influenciadas por sua crença religiosa - católica que era. José, Maria Vicentina, Rita, Jorge, Catarina, Luzia, Teresa, Aparecida, Benedita, Carlos, Sebastião. A chegada da Maria ao mundo, não foi diferente da dos demais irmãos e moradores da redondeza, ocorreu por mãos de parteira, sem maiores eventualidades. Nascia uma Maria com saúde - dádiva de Deus.
Dos onze filhos da dona das Dores apenas dois morreram: A Aparecida e o Carlos. Aparecida sofrera queimadura; a água que fervia sobre o fogão de lenhas se derramou sobre ela. As feridas foram curadas com clara de ovo. Veio a falecer algum tempo depois disso, por disenteria. Carlos aos seis anos de idade. Pensaram estar sua morte relacionada ao fato de ingerir mandioca à noite. Sofrera congestão e consequente ataque do coração. Os demais seguiram o curso da vida. Cada um tecendo a sua história, como a uma rede existencial. A da Maria, eu estou aqui registrando neste humilde escrito. Devo isto e muito mais a ela. Tudo o que for escrito nessas linhas daqui por diante será dedicado à sua memória . É o mínimo que posso fazer em agradecimento; o mínimo que posso fazer...
A casa era de pau-a-pique. O assoalho de chão batido, mas tudo muito limpo. As latas que serviam como panelas sempre bem lustradas, areiadas. Era possível ver o rosto refletido nelas. A areia vinha de um riacho bem próximo dali.
Seu Sebastião, trabalhava na roça e por isso acordava bem cedo para drenar o brejo e prepará-lo para o plantio do arroz. José e Maria, já um tanto crescidos passaram a acompanhar o pai na lida. Despertavam por volta das seis da manhã. Seu Tião sentia pena de acordá-los tão cedo. No caminho existia a mata do Alípio. Tinham muito medo da mata do Alípio. Diziam existir ali corpo seco. Uma espécie de lenda rural que muito assustava os moradores do vilarejo que se atreviam a passar por aquelas redondezas; um homem muito alto e magro que assombrava os transeuntes desavisados. Contavam também do tal boiadeiro montado em seu cavalo preto e com sua capa preta. Este, Maria garantiu que viu quando voltavam de um casamento lá da roça. O tal homem passou rápido por eles e disse:
- Boa Noite!
Apesar dos medos, repetiam aquele ato todos os dias. Seu Tião se encaminhava à roça, antes mesmo do cantar do galo. Dali tirava o sustento da família. Plantações de arroz, milho, feijão, mandioca, verduras, criações de galinhas e porcos alimentavam treze pessoas. Até que aconteceu algo diferente: O Seu Sebastião resolveu sair dali.
Não se sabe exatamente por qual razão. O fato é que decidiu juntar as tralhas e a filharada e se dirigir de Minas gerais para a serra de Angra. Dona das Dores foi de trem com a filharada. Seu Tião com o embornal cheio de galinhas seguiu pelos trilhos à pé. Caminhou horas até chegar ao destino. Lá encontrou-se com a família. Da Serra de Angra, Maria tinha vagas lembranças: do frio que se fazia naquele lugar e de um galpão onde se alojavam várias famílias; fogueiras espalhadas por todos os cantos, para preparo do alimento e cada grupo tinha a sua.
Acontecia das famílias se ajuntarem e com isso compartilharem o pão. Ficaram ali pouco tempo. Depois desceram da Serra até Amparo, distrito de Barra Mansa. Lá seu Tião se instalou com os seus na Fazenda Nossa Senhora do Amparo. As crianças passaram a estudar na escolinha da fazenda. Maria Vicentina, muito esperta, logo aprendeu a ler e escrever e como já tinha uma educação, foi logo enviada a trabalhar em casa de família, na casa da comadre. Seu Sebastião aprendeu a lidar com gados. Cuidava e tirava leite das vacas para venda. O salário deixava quase todo na venda da fazenda. Ali adquiria o querosene para a lamparina, o fumo de rolo, para o cigarro de palha de milho, e os alimentos para a filharada. Depois mudou-se para Volta Redonda e perseverou no trabalho rural, ainda com gados e retirada de leite. O ganho, ainda ficava quase todo na venda dessa nova fazenda. Levava todos os dias o leite para casa e algumas verduras plantadas por ele no local de trabalho . Pagava aluguel de uma casinha simples lá na Água Limpa. Seu Sebastião era caboclo negro e Maria das dores de pele negra também, porém, um tanto mais clara. Maria das Dores cultivava por ele muito amor. Várias discussões foram presenciadas e Maria das Dores dizia sempre assim:
- Tu Bastião com esse zói de sapo debaixo da pedra!
Depois dessa declaração fazia inúmeras acusações, demonstrando um ciúmes doentio de Sebastião com as comadres.
Seu Tião era homem muito calmo e temente a Deus. Nunca se exaltava. Ficava sempre quieto. Jamais comia sem antes agradecer a Deus pelo alimento. Balbuciava suas rezas por um bom tempo antes de degustar o alimento. Estivesse com a fome que estivesse. Ao final fazia o sinal da cruz encerrando o período devocional. Realizava tal ato religiosamente. Jamais se esquecia. A única vez que se irou foi com um rapaz que disse que se a Maria não continuasse namorando com ele lhe racharia os dentes. Seu Tião, não pensou duas vezes e Lançando mão da foice, partiu para cima do sacatraca. O infeliz desapareceu do mapa e nunca mais se teve notícias dele. Nem apareceu mais por aquelas bandas...
Bem... Enquanto Seu Sebastião continuava na fazenda, Maria foi encaminhada para trabalhar na casa do seu Pequetito Amorim e da Dona Clélia, compadre e comadre que moravam na cidade.
Tinha nessa época doze anos: moreninha, trigueira, cabelos longos, crespos, presos em tranças. Muito trabalhadeira e esperta. Na roça , quando faltava comida a iniciativa era de ir até as comadres e pedir um pouco de qualquer coisa. Levava sempre uma surra da mãe Dona das Dores, que depois recolhia o arrecadado por Maria e preparava para alimentar os demais irmãos. A Rita também foi trabalhar na cidade. A Rita já não era tão pacífica assim. Reza a lenda que cuspiu na salada da patroa nojenta, que lhe tratava mal. Maria deu mais sorte. Na casa do seu pequetito Amorim, o tratamento era melhor, embora o serviço fosse muito. A casa do seu Pequetito, consistia num balancinho de dois andares. Na base da mesma havia um degrau, onde vários rapazes se assentavam para prosear rotineiramente nas tardes de calor. Uma espécie de esquina do pecado. O seu Pequetito era pessoa muito querida ali de Niterói. Morava bem próximo à igrejinha de Santo Antônio, a primeira capela da cidade. Ele era também o grande responsável pelos bailes que entretiam a mocidade do local. Trazia os sanfoneiros de longe com o seu caminhãozinho. Transportava os conhecidos e compadres de Amparo e levava também para lá os moradores de Niterói para os bailes de casamento, que muitas vezes duravam até três dias. Presença marcante ali e uma figura bastante conhecida pelos galanteios às moças do local, o tal do Rubem. Usava um terno diferente por dia. Um para cada dia da semana e tinha orgulho disso. O sapato era de cromo alemão, devidamenete engraxado e lustrado. No cabelo, muito penteado, trazia um topete bem cuidado. Pé de valsa dos melhores. Já trabalhava na Usina. Foi criado só pela mãe. Era o único homem da família de duas irmãs: Ondina e Neyde. A Ondina, uma figura bem popular, sem os rebuscados das donzelas da sua idade, já tinha um espírito de vanguarda. Usava calças compridas, andava de bicicleta. Coisas incomuns às moças da época. Também gostava de acompanhar as partidas de futebol do Avenida Futebol Clube. Trabalhava ajudando a mãe, como lavadeira - ofício que lhe rendeu um certo conforto material e independência financeira. Dizia de boca cheia que não precisava de homem para nada. A única e última vez que pediu algo foi ao seu suposto pai, o qual lhe deu como resposta um sonoro não e um tapa na face:
- que fosse trabalhar se quizesse algo na vida.
O tal conselho, seguiu rigorosamente por toda a sua trajetória, como mulher de brios que era. Ninguém lavava e passava como Ondina. Começou cuidando das roupas dos fregueses nas margens do Rio Paraíba do Sul. Naqueles tempos as águas eram claras. Podia-se ver as pedrinhas no fundo...
Namorou um homem de nome Moacyr, ex- combatente da segunda guerra mundial, por quem nutriu uma forte paixão. Sofreu decepção. O dito cujo já era noivo de outra. Tendo ela descoberto o fato, rompeu imediatamente as relações. Não se interessou que se saiba, a partir deste triste episódio, por mais nenhum outro homem. Optou pela solteirice e nela se encontra até hoje. Mas, guarda com carinho as cartas de amor, já amareladas pelo tempo, do seu primeiro e único namorado. A Neyde, mais jovem e vaidosa, teve um bom casamento; não se misturava muito com as pessoas do lugar e gostava de frequentar o Aero Clube, no tempo em que lá não se admitia ainda a presença de negros.
A Ondina nunca concordou com isto. Preferia passar bem longe do nojento do Aéro Clube. O tal do Rubem, único homem no meio das mulheres, nas horas vagas se assentava nos degraus da casa do seu Pequetito para jogar conversa fora.
Lá, o assunto da hora era falar acerca das aventuras amorosas ocorridas nos bailes do fim de semana. Rubem , vinte e dois anos, aclamado pelo público feminino local como conquistador.
Maria inclina-se no peitoril da janela, depois de todos os seus afazeres domésticos; Isto, para satisfazer sua curiosidade de menina na flor da idade. Queria observar os movimentos da rua. O burburinho das conversas e das risadas dos rapazes, subiam até o andar de cima.
Fez isso como criança que era; garota arteira que em uma determinada ocasião chegou a urinar na caneca de um velho que passava sempre pela vila. Todas as vezes ele pedia água à sua mãe. Era um caixeiro viajante que sempre visitava àquelas bandas.
Dona Maria das Dores dizia assim à Maria:
- Traz lá àgua pro moço, Menina!
E como o homem não poupava gracejos assanhados à Maria, o que a irritava enormemente, resolveu planejar a vingança, fazendo-lhe "xixi" na caneca.
O moço ao beber o conteúdo da caneca, logo declarou cuspindo de uma só vez:
- Essa água está saloba!!!
Maria ficou como gatinha do rabo fino. Sonsa, apenas sorriu no seu íntimo.
Foi essa mesma Maria, levada e curiosa, que debruçou no peitoril da janela; e ao olhar para baixo, inesperadamente, permitiu que seus negros olhos se cruzassem com os olhos do tal do Rubem. O rapaz enviou como resposta, o mostrar da língua. Maria, cabocla, logo se escondeu. Retirou-se rapidamente, envergonhada. Ali, exatamente ali nasceu uma arrebatada e inexplicável paixão em seu coraçãozinho pueril. Um amor tão forte, que quase lhe arrebentava o peito de menina. Maria já não queria saber do cheiro e nem da vida da fazenda. Daquele dia em diante quiz trocar seus vestidos de chita por vestidinhos bem mais elaborados. Já pensou em colocar sapatos, embora, os mesmos não se ajustassem tão bem aos seus pés, tão acostumados a andar descalços pelo chão de terra, lá nos caminhos da roça. Sonhou com laços de fita no cabelo que ressaltassem sua beleza brejeira. Para os rapazes da roça, já nem olhava mais. Nem uma piscadela sequer lhes concedia. Começou a se tornar mais presente nos bailes organizados pelo seu Pequetito. Ainda que de forma bem tímida. E, sózinha, ensaiou os primeiros passos das danças. Aos poucos foi se introduzindo no cenário social. Mas, sem causar grande impácto.
Foi chegando de mansinho...
O tal do Rubem só dançava com ela na ausência de melhores companhias. Desconhecia totalmente os sentimentos de Maria. Para ele apenas uma menina, uma menina brejeira, uma menina da roça. Dançava com a Maria inocentemente sem os assanhamentos tão comuns aplicados às outras jovens, com as quais normalmente deslizava pelo salão.
Dançava simplesmente pelo prazer de dançar.
Em sua mente nem lhe passava tais pensamentos acerca da moleca, que enchia os porta-seios de papel afim de não parecer tão nova aos olhos do rapaz.
Assim transcorreram os anos:
Maria dançando ...
Trabalhando...
Trabalhando...
Dançando...
E ao seu modo, guardando silêncio, sobre aquele sentimento que nutria pelo homem da cidade.
Muito embora já não fosse tão mais em silêncio assim.
Tudo nela já revelava a sua paixão. Seu olhar. O cheiro de mato que exalava já misturado com os aromas da cidade. O corpinho que tremulava ao mínimo toque do tal do Rubem durante as danças. Danças estas, pelas quais esperava muito e que só aconteciam raramente quando calhava das moças bem apessoadas da localidade, não comparecerem, como que em uma conspiração a seu favor. Nessas noites Maria bailava por todo o salão, como dama e dona da noite. A Senhora das Dores já desconfiada (mãe sempre percebe estas coisas) perguntava para a Maria:
- Quem é o tal do Rubem?
A Maria enrolava...
Enrolava...
Mostrava que era o sanfoneiro ou outra pessoa. Mas, o Rubem ela nunca, nunca apontava.
E dessa forma mesmo com a presença da mãe, com o Rubem ela sempre que podia, dançava. A Dona das Dores começou a acompanhar mais a Maria, como mãe preocupada que era .
Também tomou conhecimento de uns fuchicos de comadres que lhe queriam bem e a alertavam acerca dos acontecimentos e do risco que a Maria corria de se envolver com o Tal do Rubem. Dona das Dores se tornou mais presente nos bailes do seu Pequetito.
Sondava...
Sondava...
E assim o cerco foi se apertando.
A comadre, Dona Clélia, ao tomar conhecimento do fato tentou secretamente desencorajar a Maria. Afinal, era um tanto responsável por ela. Teria que prestar contas aos compadres, de qualquer coisa que de mal lhe sucedesse. Numa de suas conversas falou:
- Maria coloque-se no seu lugar. Você acha que o tal do Rubem vai olhar para você, uma menina roceira?
Maria ouvia e se entristecia com suas colocações.
Mas, sonhava...
Como sonhava...
Esperou um pouco a poeira abaixar e só então retornou aos bailes. Nesse interim foi trabalhando...
Cuidando da casa e dos filhos da patroa.
Um certo tempo depois, e já com o peito cheio de saudades do seu amado, se aprontou ligeira para o baile. Tentava ser o mais discreta possível acerca de seus sentimentos. Diante de todos se mostrava indiferente. Sufocou como nunca a ansiedade de rever o Rubem depois de algum tempo, tempo este que mais lhe parecia uma eternidade de tanto que a saudade lhe corroía o coração.
O baile teve seu início como todos os outros: o sanfoneiro no seu devido posto, esticando a sanfona prá lá e prá cá; ouvia-se de longe o barulho do arrastar dos pés dos presentes; animado, como se fosse o último da vida.
No salão um vapor subia até o teto e o calor dos corpos em movimento tornava o local sufocante e quase insuportável, menos, é claro, para os mais fogosos e sensuais casais que dançavam extasiados ao som do fole.
Maria chegou no apogeu do evento, fazendo planos em sua mente de uma entrada triunfal no recinto lotado. Qual moça, que sempre sonha com um dia de Cinderela, com um príncipe e com sapatinho de cristal. Com um rápido olhar, buscou encontrar entre os ocupantes da sala, o tal do Rubem. Ninguém percebeu sua presença. Tão pouco o rapaz dos sonhos de Maria. Lá estava ele rodopiando com uma dama no salão, acompanhando o rítmo frenético da música. O vestido, de seda pura e azul celeste da moça, fazia ruídos aos giros perfeitos realizados pelo casal durante a dança. Disputavam incansáveis o restrito espaço ali existente com os demais casais que também bailavam eufóricos ao som da bela e envolvente melodia. Maria ao se deparar com a cena, sentiu como se o mundo parasse diante de seus olhos agora juvenis. Eram os primeiros sinais de ciúmes, sentimento horrível que lhe fora apresentado a partir daquele exato momento. Seu desejo foi que a terra se abrisse debaixo de seus pés. Algo tão forte que lhe queimava até a alma. Maria simplesmente e como respostas a tais sentimentos tão ainda novos e pouco decodificados por ela, sentiu a tristeza lhe pegar de surpresa.
Retribuiu com um inexplicável desejo de se afastar daquele local. Mas não, sem antes chorar. E com a mesma rapidez com que entrou, buscou descer as escadas que anteriomente lhe deram acesso ao tão sonhado lugar. Era este salão, o cenário, que com frequência desenhava em seus pensamentos e que preenchia boa parte dos seus devaneios juvenis. A pintura no rosto, feita com especial cuidado, agora, um borrado ocasionado pelas muitas lágrimas que teimosas lhes caiam dos olhos. Assim desceu a Maria as escadas, desconsolada, quando se deparou com o seu Pequetito, que sem dizer uma palavra, percebeu na jovem a dor mais forte que em uma pobre alma se pode existir - a dor do amor. Por quê outra razão estaria Maria sofrendo, não fosse por amor? Deduziu, o simpático senhor, em um só instante, que não seria nenhuma outra pessoa a não ser o tal do Rubem, o grande causador do drama e da angústia naquela menina-moça. Sorriu, com àquela sabedoria de mestre, entendido das coisas do amor. Meneou a cabeça e adentrou ao salão. Na primeira oportunidade, segurou nos braços do moço, conduzindo-o a um dos cantos da apertada sala, objetivando a revelação do grande segredo:
- A Maria desceu as escadas chorando, e é por causa docê!
Ah! Por que é que chegou aos ouvidos daquele homem a tão surpreendente revelação?
Foi como uma surpresa no primeiro momento, mas também como uma flecha a lhe ferir o peito. Uma flecha impregnada do veneno do amor. Fez uma ferida enorme. Uma chaga que só tinha uma cura, um remédio - a Maria.
O ecoar desse nome não lhe saia dos ouvidos.
Noite fosse...
Dia fosse...
Era somente o que ouvia: Maria.
Pensava:
é, já está crescida a Maria...
Nunca sentira algo semelhante. O tal do Rubem passou a melhor fixar os olhos na morena, observando-lhe mais atentamente as curvas, a cor da pele, o sorriso branco, o negro dos cabelos, cuidadosamente presos em tranças. Sua breijerice lhe causava agora tremores no coração e no corpo. Cada vez que Maria saía da casa a passear com as crianças da patroa, lá estava o tal do Rubem, para admirá-la. A esquina do seu Pequetito, daquele baile em diante, se tornou não somente um ponto de bate-papo, mas sim um local estratégico, uma espécie de mirante a lhe permitir satisfazer o desejo de contemplar àquela bela moça. Lá passou a comparecer com frequência redobrada. Desejava Maria mais do que a qualquer outra coisa desse mundo. Maria percebia os olhares que lhe eram dirigidos e devolvia com rubores e quentura na face. O tal do Rubem tratou logo, logo, de desmanchar um compromisso que tinha com a filha de um fazendeiro. Desfez a aliança por intermédio de um amigo. Nem se deu ao luxo de procurá-la para melhores explicações sobre o fim do noivado. A coitada, dizem as más línguas, sentiu muito com o término inesperado, súbito, do relacionamento. Coisas de um homem com coração apaixonado por outra mulher, cafajeste, sem dúvida alguma; mas, inegavelmente, muito apaixonado.
(Em nome do amor é que se deve perdoar tais atitudes. Somente em nome do amor...).
Resolvida esta questão, o romance com a Maria teve logo seu início. Começou ardente, culminando rapidamente na entrega dos corpos em busca da satisfação voluptuosa do desejo. Não demorou muito, Maria engravidou. Casaram-se contra a vontade da mãe do tal Rubem, que o tinha como arrimo de família. A mesma praguejava dizendo que o filho não seria feliz nem um dia sequer de sua vida ao lado da Maria. Acerca da prenhez, clamava aos quatro ventos que o tal do Rubem podia não ser o pai. Afirmava veementemente, se lançando de joelhos sobre o terreiro, com as mãos voltadas para o céu:
- Filhos das minha filhas, meus netos são. Filhos do meus filhos será ou não.
Mas, suas súplicas foram ineficazes. O Casamento da Maria e do Rubem ocorreu às pressas. Estavam Maria e o rapaz, para sempre, até que a morte os separassem, laçados, presos um ao outro, pelos sagrados votos do matrimônio. A Dona das Dores faleceu de ataque cardíaco e seu Tião alguns anos mais tarde. Os pais simples, na época, não pouparam defesa à filha. Aprovaram a decisão do moço. Concederam-lhe a mão da Maria. O tal Rubem teve que ir lá na casa do Seu Tião formalizar o pedido. Nesse dia foi muito bem tratado. Dona das Dores lhe serviu chuchu batidinho, bem temperadinho. Refeição esta, que nunca lhe saiu da memória. A cerimônia trancorreu simples, diante do juiz de paz. A Maria passou a ser do Rubem, Maria do Rubem e o Rubem, da Maria. Dessa união nasceram cinco rebentos. Dos quais, uma é esta que vos relata agora a história da vida bela da Maria.
Construiram um ninho...
Criaram seus filhos...
Se amaram...
Muitas vezes se desentederam e em todas elas se reconciliaram.
Choraram...
Sorriram...
E isto, por muitos e muitos anos...
Quantos natais...
Quantos carnavais...
Para enfim, como que seguindo ao curso natural do rio da vida, embarcassem então no frio barco da morte.
Morte esta, a única capaz de dar fim àquele amor, dar cabo à vida bela da maria. Mas, resta ainda a imensa saudade na memória de quem fica e a crença viva em um reencontro futuro.
Esta esperança estará sempre presente no coração de um cristão que acredita na imortalidade da alma.
Quantos amou e ainda ama a Maria...
Quem há, que dela até hoje não se lembre?
Por esta e por outras razões, é que eu me despeço desta história dizendo tão somente:
- Até breve Menina-moça!
- Até breve seu moço!
- Até breve Maria!