Dendê e a flor amarela
Era um cachorro vira-tomba cor de azeite, baiano de nascença, de alegria e coração. Fazia dois anos que a família tinha resolvido morar na capital do país, e nem imaginaram a hipótese de deixar Dendê em sua terra natal, pois era muito querido.
O cachorrinho era pequeno, muito peludo, com grandes patas que se espalhavam em qualquer superfície que tocasse. Tinha o hábito de piscar os grandes olhos cor de mel várias vezes seguidas como cumprimento a qualquer nova pessoa que acariciasse o papo gordo. Tinha também um par de orelhas enormes, que chegavam até o chão, não importando o quanto Dendê se esforçasse para mantê-las fora dele nos dias muito frios. Depois de um tempo, entendeu que essa sua característica jamais mudaria, e não se importava quando a temperatura baixava na nova cidade.
Certamente preferia a Bahia! Ora essa! Só de ouvir a hipótese de uma viagem a fim de visitar os familiares dos donos, já sentava ao lado deles para ouvir com mais atenção o que iam decidir e para torcer, a seu modo, por uma resposta positiva. Até aquele dia, no entanto, ninguém entrou num acordo em retornar à sua terrinha do coração e ele tinha que engolir o latido de alegria que vinha ensaiando cada vez que o carteiro aparecia no portão. Não é que não gostasse do homem, porque Dendê era um cachorro muito a favor dos afetos entre quaisquer criaturas, mas achava bom ensaiar um grito bem bonito em homenagem ao dia em que pudesse retornar à Bahia. A cada nova conversa, Dendê deitava com a barriga no chão, posicionava a cabeça entre as patas dianteiras e se deixava ficar, acompanhando com os olhos quem falava no momento.
Tudo na capital era diferente. Em seu lar antigo podia passear pelas ruas e brincar com as crianças sem ares de preocupação. Morava numa casa simples, mas com vista para a rua, árvores, grama, passarinhos e todo tipo de gente e tagarelice. Era muito fã da voz humana. O novo lar, a contragosto de seu dono, era um apartamento no 13º andar, que só dava vista para o céu, geralmente cinza naquela época do ano. Não podia ver as pessoas, nem ouvir suas vozes, nem amigar-se com os passarinhos. A cada dia Dendê aderia mais à posição de quando ouvia as conversas dos donos, o que fazia com que ficasse com uma expressão mais triste, visto que tinha aqueles olhos como que escorrendo pelo rosto caramelo.
Aí você pode se perguntar como Dendê escutava o carteiro no portão, se a família morava no 13º andar. Como estamos falando especialmente deste cachorro, a explicação é simples. Dendê logo aprendeu que os donos sabiam das pessoas que chegavam por meio do interfone. Notou que podiam ter conversas longas através daquele aparelho, e que tiravam e colocavam o fone no mesmo lugar. Pois bem. Todos os dias de manhã, por volta das nove, quando o casal saía a trabalho, Dendê puxava o fio comprido com a boca até que conseguisse soltar o fone do gancho. Assim, passava o dia todo ouvindo o barulho da rua, dos carros e das pessoas. Chegava até a cochilar com o interfone entre as patas. Depois de alguns dias tentando imaginar o que fazia com que o fone nunca estivesse no gancho, Tobias finalmente enxergou a baba do cachorrinho no fio e encontrou um pedaço de plástico preto entre os dentes do espertinho. Achou muita graça, muita originalidade e ficou até orgulhoso. Contou à Luísa, que concordou em fingir não saber como aquilo acontecia. Ela dizia, com seu sotaque gentil, todos os dias quando chegava:
--- Olhe aí! Como é que pode um interfone que se desmancha em dois? Que mistério! O que você acha, painho? Não é interessante? Ah, mas se eu pego quem anda fazendo isso...
Luísa sentia o coração apertado de tanto carinho quando percebia que Dendê estava escondido debaixo de sua cama, como que para se escusar da culpa. Imaginava como o bebê que estava em seu ventre ia amar aquela criaturinha tão esperta! Quando levantava a colcha que sua mãe fizera como presente de despedida, o cachorro dava-lhe uma lambida bem molhada na ponta do nariz, como quem diz:
--- Não se preocupe! Vamos encontrar esse cara! Estou com você!
Num fim de dia daqueles cinzentos, Luísa entrou no apartamento, muito agitada e com toda disposição. Queria pedir uma opinião a Tobias, que não tardara a chegar.
--- Pois então, pedi ao meu chefe que me deixasse trabalhar apenas meio período para que eu possa cuidar de tudo o que nosso filho precisa. Ele concordou, mas antes me advertiu sobre a proporção salarial. Diga lá. O que você acha? Dá pra ficar sem uma parte do dinheiro? Tenho que dar a resposta definitiva amanhã.
--- Só faltava não poder! Faça isso, sim. E veja se sai desse apartamento todo dia. Vá passear e leve Dendê junto com você. O pobre do cachorro não vê a rua se não for no sábado. Está ficando até inchado. Vá lá.
Luísa abraçou o marido muito apertado e agradeceu por ele entender tão bem suas necessidades naquele momento de suas vidas. Foi até Dendê e informou que, daquele dia em diante, estavam numa dieta rigorosa, que incluía caminhadas todas as tardes, ao que o cachorro respondeu com a versão final de seus treinos para o dia de uma notícia boa como aquela. Latiu o mais alto e agudo que pôde e foi dormir feliz, abanando o toco de rabo e deixando escapar um grosso filete de baba sedentária.
Na tarde seguinte, Luísa cumpriu o prometido e abriu a porta segurando uma coleira azul. Dendê gostou logo da cor e do aspecto do novo colar e, mesmo que na Bahia pudesse andar pelas ruas sozinho, estava conformado. Tinha certeza de que a dona o deixaria caminhar sozinho assim que visse seu bom comportamento.
Quando chegaram à rua, tudo parecia muito diferente do que quando saíam aos sábados de manhã. Um homem excessivamente grande e apressado quase pisoteou a cabeça do animalzinho rechonchudo e ainda reclamou por quase ter caído ao desviar. Esperaram muitos minutos até finalmente atravessarem a rua que levava à entrada do parque.
Todos os cachorros apreciam a natureza como uma espécie de banheiro natural, e por que Dendê havia de ser diferente? Encontrou uma moita verde-vivo e fez sua escolha instantaneamente. Luísa, entendendo a necessidade do cachorrinho, tirou dele a coleira.
Quando estava prestes a jatear sobre a moita, Dendê estancou. Virou pedra. Ficou paralisado. Naquele minuto não piscaria o olho nem se lhe oferecessem uma viagem para onde tanto queria ir. Sentou na posição pança-no-chão e ficou admirando, admirando, admirando, admando, amando. Estava apaixonado, e sem volta.
A mulher notou que Dendê demorava demais e foi ver o que era. Vasculhou a moita à procura de algo extraordinário, mas não encontrou qualquer coisa digna de atenção. Sabia que o cachorro não ia ficar bobo a troco de nada, então sentou-se atrás dele, para ter o ângulo de visão que ele tinha e tentou mirar na mesma direção. Só então percebeu que Dendê estava enfeitiçado por uma minusculinha flor amarela.
Sabendo que o cachorro não sairia dali por um bom tempo, foi comprar um sorvete e observar os peixes no lago. Alongou os braços, as pernas, conversou com uma vizinha e voltou à moita. Ele ainda estava lá. Com muito esforço conseguiu convencê-lo a ir embora, e achou até que tinha visto uma lágrima. Sentiu pena do cachorrinho apaixonado, mas já estava escurecendo.
Naquela noite, Dendê não comeu. Nos dias seguintes, o fone estava sempre no gancho. Veja só como os apaixonados são parecidos!
Todo dia, assim que chegava, Luísa tinha que se policiar para não atingir Dendê, que estava sempre esperando colado à porta, com a coleira na boca. Como ele dava conta de pensar como gente?
Dendê aguardava o minuto de admirar a flor amarela todos os dias. Achava que tinham tanto em comum! A começar pela cor. O amarelo da flor combinava muito com o quase-amarelo dos olhos de Dendê e a cor de seu pêlo era um terceiro tom à harmonia do casal. Se pintassem um retrato dos dois juntos, seria uma obra de arte.
O cachorrinho tinha aquele sentimento gostoso cravado no peito peludo, que se assemelhava ao que sentia por sua terra, mas este era mais real, pois podia vivê-lo todos os dias. Tinha até ficado mais esbelto e perdido a gordurinha extra, que era seu pacto com Luísa.
No dia em que a dona comunicou a Dendê que iriam ao veterinário para uma tosa, o macho da relação ficou se achando galante e, quando chegou ao parque, correu mais do que de costume para se mostrar à flor amarela. Espantosamente, havia um garotinho observando sua namorada, o que o fez sentir uma pontada aguda, capaz de fazer com que, sem motivo aparente, quisesse morder alguém. Claro que não sabia que era ciúme, mas, mesmo sem saber, detestou a sensação.
Tentou se convencer de que era um amante muito delicado e não avançou sobre o garoto. Ficou esperando sua vez pacientemente, porque sabia que conversariam seriamente sobre aquele flerte. Essas divagações faziam com que se coçasse todo e, na luta para que a coceira parasse, não viu que o garoto tinha arrancado a flor amarela. Aí, deu vazão ao ciúme e correu o mais que podia com suas pernas curtas até a entrada do parque, onde podia avistar o menino.
Quando já se preparava para travar batalha com seu oponente, viu que a flor amarela não estava mais com a criança, e sim com uma mulher que acenava da janela de um carro veloz, desaparecendo a muitos metros de distância.
Mesmo se eu tentasse, não conseguiria detalhar como a partida da flor amarela desferiu um golpe contra o coração inocente de Dendê. Durante meses não comeu direito e não aceitou sequer aquele biscoito especial comprado apenas na data de seu aniversário. Não queria saber de comemorações e não levou em conta a solicitude de Luísa e Tobias em oferecer o biscoito seis meses antes do dia de seu nascimento. Todo minuto desejava estar na Bahia, brincando com as crianças na rua.
Permaneceu nesse estado de espírito durante cinco meses inteiros, preocupando muito os donos do apartamento na capital. Só melhorou quando o bebê do casal nasceu e trouxe uma nova atmosfera ao lar. Gostava muito de observar Luísa amamentando Noé e curtia ao máximo quando o bebê chorava e esperneava. Era uma voz nova e diferente, que fazia brotar em Dendê a sensação de um começo todo novo, embora diariamente quisesse que a flor amarela tivesse conhecido Noé.
Era um sábado muito quente quando Dendê percebeu que havia algum tempo que não ia ao parque. Na verdade, não se importou muito com isso, porque não gostava de lembranças ruins. E também porque naquele momento observava o bebê e achou que havia luz demais no berço. Subiu agilmente na cômoda utilizando uma almofada como apoio, feliz por ter se livrado dos pneuzinhos que tinha antes e que não permitiriam que escalasse um móvel tão alto!
Quando entrou na frente da luz que atravessava a persiana azul, a fim de não deixar que os raios solares atingissem Noé, sentiu cócegas na pata direita. Tirou-a do parapeito da janela e recolocou-a rapidamente sobre a superfície sem tirar os olhos do bebê. Queria ver se sua missão tinha sido cumprida. Então, sentou-se para observar Noé.
Se fosse gente, Dendê teria soltado um palavrão. Mas que coisa! Lá estavam as cócegas na pata direita outra vez. Estava prestes a rosnar, quando viu que havia uma borboleta amarela tentando chamar sua atenção no peitoril da janela de um 13º andar na capital do país.
****************