Um conto de Réveillon

O Caso da Bolsa de Vime

© Soaroir de Campos

Agosto de 2008

Era tarde de 31 de dezembro de 1991 quando Mariazinha voltou para casa e pela primeira vez percebeu o espaço que o silêncio ocupa. A casa parecia não ter paredes nem teto. Era um enorme vão sem distinção de cômodos. Embora não ficasse na “Rua dos Bobos” e nem fosse o “número zero”, para ela naquela casa também faltava o chão.

Num acesso de desassossego, num só impulso, Mariazinha embrenhou-se guarda-roupa adentro e abriu a tão conhecida e surrada bolsa de vime com alças de madeira escura. Olhou, esvaziou tudo no chão. Não conformada, abriu um bauzinho de estimação e também todas as gavetas. Não era possível que nada tivesse sido deixado para justificar a partida de sua mãe, se remoía. Uma carta, pelo menos um bilhete de adeus Mariazinha esperava encontrar. Não concebia uma mãe partir assim sem se despedir da sua primogênita. A dor pela falta de consideração se confundia com a dor da ausência em si.

Nas ruas já comemoravam o novo ano. Uma banda na calçada tocava, entre algumas marchinhas, “Jingle Bells”, apesar de o Natal já ter passado, enquanto senhores musicistas aposentados angariavam fundos para as suas “Boas Festas”. Um cheiro forte de pernil assando saía do hall do elevador e impregnava o espaço que outrora fora um lar e em cuja mesa agora sobraria uma cadeira. O vestido branco que acabara de comprar para festejar a virada sequer desembrulhou. Mariazinha jogou-se num canto da sala e chorou. Chorou todos os 40 anos, nos quais fingiu ser forte e destemida. Chorou um choro que vinha do útero e que lhe descia ardido pelos olhos. Como sonâmbula, se levantou e percorreu cada espaço ainda à procura de alguma coisa escrita que a confortasse ou que pelo menos amenizasse a dor daquela partida, cujo desespero sequer em sonho imaginou sentir. A tarde já perdia o tom amarelado de verão e Mariazinha, que já nem sabia mais o que procurava, seguia procurando. Só procurava. Levantou os lençóis, a toalha da mesa, procurou entre as panelas e na dispensa. Esvaziou todos os guardados até que a casa ficasse cheia da desarrumação. Tudo espalhado pelo chão e nenhum aviso prévio para aquele sumiço.

Aos poucos as paredes e o teto e os móveis foram voltando para seus lugares. Ela começou a recolher tudo o que ela havia espalhado e voltou ao sofá. Sobre o Fritz Dobbert aberto, contrastando com a madeira bem conservada e as teclas de marfim, repousava uma partitura já amarelada: “Réquiem em Ré Menor”:

I. Introitus

Requiem aeternam dona eis, Domine,

Et lux perpetua luceat eis.

Te decet hymnus, Deus, in Sion,

Et tibi reddetur votum in Jerusalem:

Exaudi orationem meam,

Ad te omnis caro veniet.

Requiem aeternam dona eis, Domine,

Et lux perpetua luceat eis.

Em um aparador à esquerda, entre um porta-lápis e um solitário de fino cristal, outras peças de Mozart a olhavam de esguelha. Mais adiante a cristaleira, com a sua coleção de xícaras de todo o mundo, parecia zombar da situação.

Alheia a qualquer censura, Mariazinha segurou contra o peito a bolsa de palha e, numa última vã tentativa, abriu-a. Recolheu do chão seus bens deixados sem testamento e recolocou-os em seu “cofre” de vime: uma cruzinha de madeira arrumada com uma fina linha vermelha, uma folha de louro seca e desbotada pelo tempo e um espesso e prateado espelhinho retangular. Nenhum bilhete. Como uma autista, pendulando-se em seu próprio tronco, ali ela ficou até perder a noção do tempo, quando foi distraída de seu sonambulismo por uma mensagem: - “Filha, você se esqueceu de que eu era analfabeta?”.

Fim.

(mini conto apresentado na 10ª Edição "Talentos da Maturidade " do Banco Real)