Uma triste saga de amor
Do alto da arenosa colina Shankár observava o sol esconder-se, acusando assim mais uma tarde que chegava ao fim. No coração abrigava a gélida e negra solidão como a noite que se aproximava. Mais uma noite... Uma brisa fria que soprava da parte meridional de Askalón anunciava que, sem estrelas e sem luar, aquela seria uma das mais negras e frias noites desérticas. Shankár era o príncipe de Askalón; povo que habitava as regiões setentrionais do deserto de Barah-Dalih, localizado na Medéia, Oriente Antigo. O povo de Askalón estava sendo vítima de ataques contínuos, geralmente noturnos, e por não ser um povo de guerra vinha sofrendo muitas baixas; seu negócio era o comércio: ouro, plantina em lâminas, bronze e ferro era tudo o que entendiam. Shankár comandava as sentinelas que, tentando guardar as entradas de seu reino, vigiavam os quatro limites. Ao norte, na Torre da Entrada Principal; ao sul, no Portão dos Animais; ao leste, no Tanque da Kramen; e a oeste, junto às margens do Grande Golfo. Era aqui, na cabeceira do Grande Golfo que estavam alojados Shankár e sua tropa de comando.
Os olhos negros percorriam o horizonte na tentativa de enxergar um vulto, ou notar um movimento ou gesto na escuridão que, no seu silêncio começava metamorfosear-se em madrugada e, daqui a pouco, num novo dia. O príncipe de Askalón tentava compreender a razão daqueles ataques. Qual o mal que seu humilde povo poderia ter praticado? Até então, seu povo nunca tivera inimigos. De repente, surgindo do nada, interrompendo suas divagações, como de um sobressalto Shankár se vê atacado por um cavaleiro solitário... Um batedor... Trava-se um luta intensamente corporal, sem espadas, lanças ou quaisquer outras armas. Apenas mãos e pés. Assustados os comandados de Shankár partem em retirada; pois, o cavaleiro que os surpreendera trazia em sua cabeça a máscara de Shev-Gotheh, o deus da morte. Ao abandonarem seu comandante, deixam-no à mercê do inimigo que engrossa suas forças com a chegada de seu exército. Shankár, dominado e aprisionado por correntes, é levado à presença de Samyr. Um misto de mulher e deusa. Com um olhar frio, penetrante e incrivelmente negro. Cabelos que escorriam pelos ombros, indo descansar nos quadris, de um tom negro-azul e que brilhavam num prata selvagem. O rosto, sutilmente moldado, expressava inocência apesar do queixo inquiridor... Mãos tênues e lânguidas, porém, firmes. Pés e pernas que, apesar de sustentarem um escultural combinado arquitetônico, pisavam seguros e decididos.
Samyr, a jovem princesa dos semíticos ludianos ficara orfã desde a invasão de Lude pelos também semíticos ieb-hutzeus. Nessa invasão, além dos pais de Samyr, também foram assassinados outros tantos casais. Naquela ocasião Samyr contava treze anos e agora, nove anos passados, parecia esforçar-se para não lembrar do episódio daquele dia. Desde a morte de seus pais, passou ao Trono Real de Lude, sendo assistida pelo Conselho Real composto por Háruk, Autoridade de Guerra; Ádekehl, Autoridade das Leis e Abi-Majahl, Autoridade Religiosa. Ao descorir que Shankár era o Príncipe Imperador de Askalón, pois deixara à vista o sêlo de seu anel real, determina que fosse encarcerado e condenado à morte; os askalianos foram sentenciados à extinção...
No úmido e sombrio calabouço, sem ter recebido qualquer chance de defesa, Shankár indignava-se por não ter estado em seu próprio julgamento. Sequer ouviu sua sentença ou qualquer balbuciar de palavras sair da boca de sua opressora. Afinal, quem ela pensava ser? Condenar o Imperador, sem que este pudesse expressar o seu direito de defesa? O que é que os askalianos haviam feito? Que mal Shankár e seu povo cometeram? Perguntas que ainda não haviam chegado aos ouvidos da princesa... Percorriam apenas os pérfidos e fétidos corredores dos calabouços. Um dos carcereiros, Farjid, depois de ouvir por vários dias as mesmas perguntas de Shankár, faz chegar à princesa o tom inquiridor do Príincipe de Askalón.
Às vésperas da execução da sentença de morte de Shankár, as portas de sua cela são abertas. Surge alguém, impetuosamente, como o vento do sudoeste... Qual não foi a surpresa do príncipe ao reconhecer o rosto de traços finos sob o véu que, pobre coitado, não conguira esconder tamanha beleza. Sim, Shankár não estava sonhando. Era a pincesa Samyr... Mas, o que poderia querer? Porque viria, meio à madrugada, secretamente visitá-lo? O que viera fazer ali, às ocultas? Ficaram por alguns minutos trocando olhares... Foi Samyr que interrompeu o silêncio, tentando justificar-se. Falou durante todo o tempo enquanto Shankár ouvia aquele relato irreal. Samyr dizia que o povo de Askalón desejava se apoderar dos tesouros de Lude, de sua terra e seu trono; por isso, ela estava ali, para saber o porquê! Por qual motivo os askalianos planejaram a morte de seus pais e conterrâneos? Porque mataram tantos inocentes?
Shankár, enlouquecido, agarra a princesa pelos braços e tenta de todas as formas negar tudo aquilo. Askalón nunca fora povo de guerra. Sequer sabiam enpunhar lanças, escudos e espadas... Seu negócio sempore foi o comércio... Os ataques partiam na verdade dos ludianos e não de seu povo. Os ludianos queriam seu ouro e ser absolutos na região. Os askalianos eram, sim, vítimas de assaltos e assassinatos noturnos. A princesa desvia seu olhar na direção de Farjid, o carcereiro bom, que confirma tudo aquilo como ordem dos cobiçosos Háruk e Ádekehl.
Shankár que ainda segurava Samyr pelos braços sente que seus corpos se tocam... Peito ao peito, ventre ao ventre. O véu de Samyr caindo de sua cabeça e deixando à mostra seus negros cabelos; sua capa, caindo ao chão, deixa desnudo os ombros e a ínfima lâmina de luz que atravessa os troncos da velha porta do cárcere testemunha o primeiro beijo entre Samyr e Shankár. Sentiram naquele abraço e beijo ardentes a segurança de uma nova sensação. Não conheciam paixão; e, muito menos, sabiam que era o amor que se lhes chegava naquele momento... A sentença de morte foi adiada para que se apurassem as provas para a condenação do askaliano (isto foi apenas um ardil para que fossem presos e condenados os verdadeiros culpados). Samyr pomete voltar na próxima noite. E, quando a noite chegou trouxe em seus braços o amor... E assim foi também na próxima noite, e na próxima, e na próxima... Entretanto, traídos pela guarda fria e mancomundada com os ileais conselheiros, são pegos quando encenavam o ápice do ato de amor. Háruk e Ádekehl, flagram a princesa na cela do sentenciado. Enciumados e envenenados por tão grande cobiça, delatam a princesa como traidora. E, como maioria no Conselho Real, determinam que os amantes fossem executados em dois dias. Farjid, o carcereiro, consegue chegar à Askalón e conta tudo o que estava acontecento e como o casal imperial estava condenado a morrer dali a dois dias. Os askalianos unidos a alguns ludianos que acreditavam na inocência da princesa engendraram um plano de resgate que constava de um ataque surpresa. Sim! Os ludianos conheciam as entradas secretas da cidade; eram homens de guerra, enquanto os askalianos possuíam o material para que armas poderosas fossem forjadas.
Lanças em punho e coração na ponta das espadas, assim se lançaram sobre Lude o exército que pretendia libertar a princesa e o principe. Muitos tombaram... Fiéis aos seus líderes, muitos se entregaram numa luta um tanto desigual. Ádekehl e Háruk tombaram mortos. Farjid foi promovido a Autoridade de Paz. Shankár e Samyr uniram seus povos; mas, também foram mortos ao fio da espada de Abi-Majahl...
Fez-se manhã de um dia escuro e sem sol... Chuvosa e triste, foi a chegada da desértica noite, onde só o coitote insistia em cantar o seu agouroso canto.