As Pequenas Coisas
JÁ FAZIA QUASE DOIS ANOS que nós namorávamos, e eu nunca fui do tipo muito atenciosa. É claro que havia nossos carinhos particulares, nossos apelidos, nossas brincadeiras na cama e nossas sempre bem vindas risadas naqueles filmes de terror B que adorávamos e sempre víamos abraçadas. Os olhos saltitantes e as vísceras absurdamente mal feitas eram nossa diversão das noites de fim de semana. Mas não passava disso: não havia nada além daquelas risadas e daquelas noites boas de sexo. Não sobrava tempo para nos conhecermos melhor. Era sempre aquela rotina de filmes, risadas, sexo e silêncio.
- Quem é você? – perguntei uma vez, quebrando o silêncio. Estávamos deitadas na cama, uma ao lado da outra, de mãos dadas e dedos entrelaçados. Não fazia ideia se ela estava acordada ou não, mas resolvi arriscar minhas chances. Eu tinha meus olhos abertos. Lembro-me que via sombras no teto, e brincava de achar formas nelas: vi o perfil de um homem narigudo e um cão atrás de um graveto.
- O quê? – ela perguntou, talvez por ter acabado de acordar, talvez por não ter entendido a pergunta, ou talvez para se certificar de que ouvira direito.
- Quem é você? – perguntei novamente, dessa vez mais alto, enfatizando a pergunta. – Sabe, eu te conheço há quanto tempo?, dois anos, não é?, e parece que ainda não sei quem você é. Você nunca me apresentou aos seus pais ou a algum parente. É tudo tão estranho...
- É melhor continuar assim, acredite em mim – ela respondeu, pegando um cigarro do criado mudo e acendendo-o. – Quando você descobrir que meu pai é um filho da puta preconceituoso e minha mãe é uma vadia acéfala que ouve apenas o que o marido tem a dizer sobre como as lésbicas vão povoar o inferno no fim dos tempos, você não ficará tão animada assim para conhecer eles.
- É tão ruim assim?
- Você nem imagina o quanto... – ela respondeu. – Eu não gosto muito de falar sobre meu passado. Sabe, é uma coisa tão inútil... aquilo tudo já passou, e não há nenhum motivo para relembrar todos os momentos, bons ou ruins. Eu, particularmente, prefiro olhar para frente e me preocupar com o que está por vir.
- Você tem razão... – tentei mentir, fingindo a mim mesma que o passado não importava. – É só que... sabe, eu ia adorar saber o que você gosta, poder te agradar sempre que eu puder com essas pequenas coisas.
- Sabe o que me conquistou em você, de verdade? – ela perguntou, dando a última tragada no cigarro antes de apagá-lo no cinzeiro. – Foi naquele mesmo dia que nos conhecemos, quando você me carregou pra sua casa...
- Ah, como eu posso esquecer? Você vomitou meu carro todo...
Ela riu.
- E eu nem te conhecia. – eu disse, vendo agora a esquadrilha da fumaça desenhar um arco-íris nas sombras. – Então foi naquele dia que você se apaixonou por mim?
- Não por você, a princípio.
- Pelo que, então?
- Pela sua cozinha.
Ela finalmente havia aguçado minha curiosidade.
- Como? – dessa vez eu perguntei, talvez para ter certeza de que tinha ouvido bem, ou para ver se tinha entendido a resposta corretamente.
- Ué, pela sua cozinha! Você já viu como ela é? Cheia daqueles azulejos vermelhos por toda a parede, aquela bancada de vidro, aqueles armários imaculadamente limpos e todo aquele ar de filmes B. Todo aquele vermelho me hipnotizou.
- Hm, agora sim, mocinha misteriosa, até que enfim alguma coisa. Então quer dizer que gosta de vermelho?
- O que, você acha que eu vejo todas aquelas bostas de filme por quê? Por causa da atuação dos protagonistas?
Depois voltamos à rotina do silêncio, e eu já não prestava mais atenção às sombras no teto. Agora tinha uma informação valiosa rondando meus pensamentos. Ainda não sabia o que faria com ela, mas sabia que não deixaria aquilo passar despercebido.
DESCOBRI A UTILIDADE DO VERMELHO quando passava em uma banca de jornais a caminho do trabalho. Sabe esse tipo de coincidência boba, que sempre acontece naquelas horas em que menos esperamos mas que, ao mesmo tempo, torcemos para que aconteça? Foi mais ou menos isso que ocorreu no momento em que virei o rosto e encarei um belíssimo livro de receitas exposto naquela armação giratória de ferro. Peguei-o, animada com a capa: uma foto de alguma coisa fumegante e suculenta; parecia uma grande e deliciosa sopa, com pedaços de carne e uma quantidade absurdamente alta de tomates. Tudo vermelho como sangue, exatamente da mesma cor dos meus azulejos da cozinha. Abri o livro, curiosa com seu conteúdo, e passei diretamente para a página que continha a receita que estampava a capa do livro. Tomates, pimentões vermelhos, tomates cereja, carne vermelha, pimenta dedo-de-moça, muito colorau e alguma coisa de sal e orégano. Não parecia ser uma receita lá muito complicada. Perfeita para uma noite de sexta-feira; perfeita para ser preparada por uma mulher completamente inexperiente na cozinha, mas que sabia seguir receitas com toda a atenção, dedicação e cuidado; perfeita para satisfazer uma mulher amante do vermelho.
Paguei o livro e saí abraçada a ele, assobiando alguma coisa dos Beatles enquanto andava pelas ruas desertas do início da manhã.
ESTAVA TUDO PRONTO, APENAS ESPERANDO pela chegada dela. Na bancada da cozinha, contrastando com os azulejos da parede, deixei um grande pedaço de carne cortada ao comprido, rodeado pelas leguminosas e pelo colorau, tudo arrumado milimetricamente para parecer a bagunça mais bonita da face da Terra. Estava maravilhoso, não podia deixar de admitir para mim mesma enquanto olhava minha obra de arte. Minhas unhas eram tão vermelhas quanto o conteúdo da panela que fumegava em fogo brando. Não havia nada ali que pudesse tornar aquela noite um desastre.
Quando a campainha tocou, nem mesmo fiquei nervosa. Sabia que tudo daria certo.
- Você não sabe como foi meu dia hoje! – ela começou tagarelando, jogando o casaco e a mochila em um canto. Deu-me um selinho, e continuou com seu monólogo. – O desgraçado do RH me veio hoje com uma conversa completamente absurda sobre nossos controles de custo. Ficou meia hora falando no meu ouvido como temos gastos supérfluos e blá blá blá, que deveríamos dar o exemplo, já que somos os chefes, e não deveríamos mais gastar dinheiro da empresa com lanches e todas essas baboseiras e...
Então parou, como se finalmente alguma coisa tivesse chamado-lhe a atenção.
- Que cheiro é esse? – perguntou, inspirando mais profundamente.
- Ah, é uma coisa que eu fiz pra nós... – respondi, dando um sorriso. – Uma comidinha especial.
Percebi que sua expressão mudou completamente, assim mesmo, da água para o vinho. Pareceu uma pessoa diferente: os olhos pareceram mais perspicazes e a expressão mais libidinosa, como se tivesse completa certeza sobre como aquela noite iria terminar.
- Você está... linda. – ela comentou, olhando-me dos pés a cabeça, vislumbrando meu vestido vermelho. – Está... deslumbrante.
- Sua cor preferida, não? – perguntei, dando uma volta. – Sabe, quero que hoje seja uma noite especial. Depois de ontem, acho que tenho certeza sobre tudo que sinto por você. E quero que agora seja pra valer.
- É um... pedido? – ela se levantou, um pouco incrédula. - ...de casamento?
- Já que vamos fazer isso, que tal fazer do jeito certo? – perguntei, sorrindo. – Vamos, venha até a cozinha. Venha ver o que preparei para você.
Ela viu a comida e sentiu o cheiro; sentiu-se inebriada. E eu me sentei em uma cadeira de costas para a bancada organizadamente desorganizada, sorrindo.
E então aquilo aconteceu. Como uma desculpa para acabar com toda a alegria ou para tornar minha bela história uma tragédia sem precedentes. O projétil partiu como uma flecha, vermelho incandescente, para se depositar em meu peito. Nunca soube da onde veio e nem porque veio. Só lembro de ouvir a voz dela perguntando se tudo estava bem logo após o estampido. Veio até mim, correndo, o rosto franzido – via o seu rosto como num vidro translúcido, embaçado e disforme – perguntando o que havia acontecido. Não percebeu o sangue a princípio, pois, ao misturar-se ao tecido do vestido, pareceu apenas uma sombra. No entanto, assim que começou a verter por entre meus dedos e pingar naquele suculento pedaço de carne, ela pode gritar, desesperada, e chamar por ajuda. Ouviu outros estampidos, mas não se preocupou em abaixar-se ou salvar a si mesma, não comigo naquele estado, não depois daquele belíssimo pedido, não depois de todo aquele amor declamado tão pura e simplesmente.
Morri nos braços dela, sem nunca saber o que aconteceu. Inesperado, esse meu fim, como o de qualquer um perdido em meio a essa incessante guerra urbana. Além de inesperado, ouso dizer que foi idiota. Uma vida perdida por uma cápsula com não mais de cem gramas. Uma vida de amor desperdiçada em prol de uma guerra da qual não fazia parte, e da qual não queria nem ao menos ter notícias.
No fim, mais uma morte para se contar nas estatísticas, perdida e chorada apenas pelos parentes e por aquele amor. Um final indigno dos filmes B, sem tripas nem gritos, sem muita dor nem desespero. Apenas um fim. Uma explosão, um pouco de sangue, um par de olhos opacos e um amor a me abraçar o corpo frio, numa tentativa desesperada e inútil de reanimar-me. Tão efêmera, essa tal de vida. Como pode demorar nove meses para estar pronta e acabar assim, de sopro, em menos de cinco minutos? Isso é um daqueles mistérios que nem mesmo os mais proféticos dos profetas sabe responder. Quem dirá eu, uma simples mulher com um fim indigno de uma boa história.