O HOMEM QUE QUERIA SER BOM – I PARTE

Há dias eu observava um homem diferente. Cabelos grisalhos sob um boné bem incrementado, cara de meia idade, embora com um ar de garotão. Sempre vestindo camiseta sob a jaqueta jeans azul, calça jeans da mesma cor e tênis branco. Andar tranqüilo, às vezes observando meu trabalho com discrição ou fazendo algum comentário sobre qualquer acontecimento entre os freqüentadores do bar.

Passado das nove, um pouco mais cedo ou mais tarde, ele aparecia com seu andar lento. Ficava por ali sentado a uma mesa, primeiro tomando um café, depois saboreando demoradamente uma cerveja. Algumas vezes não aparecia. Outras vezes, aparecia e desaparecia sem aviso, passando daí boa parte do dia sumido. Geralmente uma mulher loura aparecia perto do meio-dia a indagar por ele, chamando-o para almoçar. Nos dias em que ele ficava mais tempo fora ela vinha em outras horas também, sempre perguntando sobre o “Vandeco”. No começo não associava esse nome a ele. Parecia-me um apelido infantil, ou um tanto homossexual, que não combinava com sua aparência séria e quieta. Tempos mais tarde ele me disse que seu nome era Vanderlei e que a mulher loura que eu pensava que fosse sua esposa, se tratava de sua irmã, que, assim como a mãe e o sobrinho, filho dela, o chamava carinhosamente de “Vandeco”.

Algumas vezes via um velho careca com poucos fios de cabelos brancos a circundar-lhe a nuca. Observei depois de algum tempo que quando esse velho estava o cara do boné não aparecia. Apesar de que já conversara bastante com os dois, não percebera a semelhança. Entretanto, vi um dia o velho puxar um boné azul do bolso da calça, transformando-se no homem do boné ao vesti-lo. Estupefato, aproximei-me e pedi-lhe que tirasse o boné. Ele o fez, transformando-se novamente no velho careca. Pedi-lhe novamente que pusesse o boné. Ele vestiu-o, voltando a ser o cara de meia idade bem na minha frente. Sem o boné, era o velho careca, com o boné, transformava-se imediatamente num garotão de trinta anos. Desde então o chamava de “Véio”, como sempre chamei mentalmente o velho careca, e nossa amizade começou à partir desse dia.

Nos dias em que desaparecia, nem sempre passava o dia sumido. Mais tarde ele aparecia e ficava por ali. Assim passava o dia entre as mesas do bar que eu decorava por ordem da empresa em que trabalhava, puxando assunto a qualquer instante, até que resolvi convidá-lo para trabalhar comigo, para dar fundo de tinta nas paredes em que eu pintaria as marcas dos produtos da empresa.

Minha vida estava desmoronando. Meu esôfago abrigava um grande caroço, que eu tentava deglutir apesar de rasgar meu peito. Três dias depois que comecei o serviço naquele bar minha esposa falou-me de sua decisão de deixar-me. Sem mais nem menos; sem um conflito que tivesse progredido ou algo assim, o relacionamento que ia tão bem, como ela há pouco tinha dito que dissera a seu analista, terminava. E o que eu poderia fazer?

Após preparar a janta para aguardá-la, com muito sono, percebi que mal passara das vinte e uma horas, sedo demais para ir buscá-la na universidade. Por isto deitei-me para tirar um cochilo, tendo o cuidado que pôr o rádio relógio a despertar dali uma hora e meia. E, para garantir que não passaria da hora, deitei como rádio de fones a todo volume. Acordei mais tarde ouvindo potentes batidas na porta. Levantei assustado com a voz da minha esposa a me chamar. Logo percebi que tinha dormido demais e ela tivera que retornar da aula de ônibus, sendo que era difícil e perigoso. Como teria eu, que a amava tanto, cometido tão imperdoável falha?! Conferi o despertador, mas ele tinha cumprido seu dever. Eu é que não poderia tê-lo ouvido impedido pelo som alto do walkman ao qual meus ouvidos tinham acostumado. Quando abri a porta, ela entrou furiosíssima, muito além do que alguma vez estivera. Chateado por tê-la feito passar por tal situação, pedi-lhe desculpa. Todavia, ela seguiu desferindo palavras de indignação, dizendo que não podia contar comigo.

– Como não pode contar comigo?! Protestei. – Quando foi que deixei de te buscar, ficando inclusive a esperar na frente da universidade?

– Não dá pra contar contigo! Recalcitrou. – Me deixaste esperando de propósito!

– Jamais faria isto! Sabes muito bem que não faria! Quantas vezes estive na rua a te esperar?

– Não dá mesmo para contar contigo! Reiterou. Quase uma hora da madrugada e eu estou chegando em casa. Tu podia ter ido me buscar de carro, mas te custava muito!

– Como me custava muito?! Sempre tenho feito isto! Hoje é que falhei e não foi de propósito. Por favor! Não dá para perdoar?

– Não dá para contar contigo! Prosseguiu. Quando eu preciso de ti, tu me falha!

– Não é assim. Jamais foi e sabes muito bem.

– É sim! Retorquiu irracional.

– Já que é assim, nunca mais vou te buscar! Se não pode ter um pouco de gratidão para perdoar agora que eu falhei, também não te busco mais. Sentenciei.

Bastante magoado, apesar de que desejava ter tido a chance de pedir desculpas à minha amada, deitei para o lado oposto da cama e dormi com o coração duplamente dolorido. No dia seguinte despertei com uma ferida no peito por ter falhado e ao mesmo tempo ter sido tão duro com ela. No caminho para o trabalho sequer falamos. Ela, por raiva, talvez, e eu, envergonhado. Apenas a deixei no trabalho e conduzi-me para o bar, certo de que mais tarde ligaria para ela e tudo estaria certo. Pediria-lhe desculpas por tudo, esclarecendo, o que ela já sabia, que o que dissera sobre não mais buscá-la era da boca pra fora. Mais tarde liguei e me disseram que ela tinha saído do departamento e não podia atender. Muitas outras vezes liguei naquele mesmo dia, recebendo sempre a mesma resposta estranha. Decidi que se estava muito magoada não tinha problema, pois, embora não pudesse dizer-lhe que não era a sério a decisão de não buscá-la, iria até a universidade na hora da largada e a traria para casa.

Na verdade minha vida já tinha desmoronado. No estacionamento da universidade aguardei que milhares de alunos saíssem, mas ela não apareceu. Vi-a apenas em frente de casa quando retornei. Após guardar o carro, indaguei se não tinha me visto na universidade a esperá-la.

– Sim, vi, respondeu, mas preferi vir sozinha. – Não precisa mais me buscar, acrescentou, de agora em diante voltarei de ônibus.

– Para quê isto?! Qual é o propósito de fazer conflito justamente no dia do aniversário de nossa união.

– Quê aniversário?! Retorquiu. – Só pra ti esta data é importante. Tu mesmo a inventou. Para mim ela não é nada.

– Não fale assim! Seria um absurdo terminar nossa relação porque uma vez não fui te buscar.

– Não é por isto que nossa relação vai terminar, esclareceu.

– Nossa relação não vai terminar, afirmei tranqüilizado.

– È justamente sobre isto que quero te falar hoje, ela observou. – Não desejo mais continuar nosso relacionamento.

Meu mundo desabou sobre mim. Ela era a terra onde eu plantara meus sonhos, regava, adubava e aguardava germinar. Uma angústia extrema tomou conta do meu ser. Senti minhas pernas bambas, o peito explodir e o coração dissolver-se. Não era verdade. Na próxima frase ela diria que era brincadeira.

– Mas por quê?! Indaguei amargurado. – Só por causa de eu não ter te buscado uma vez?

– Não é por causa disso.

– Então é por causa da Virgínia!

– Também não é por causa disso?

– Então por que é?! Perguntei com voz embargada.

– Não é por culpa tua. O problema é comigo.

– Grande consolo! Ironizei. – Estou perdendo a quem eu amo e me conforta saber que não é minha culpa! Grande coisa que não é minha culpa! Preferia mil vezes que fosse minha culpa. Só não queria te perder!

Sua decisão era firme. A resposta evasiva de que não era minha culpa deixou bem claro que não havia retorno. Todavia, eu não a aceitaria tão facilmente. Achava que aquela decisão não tinha sido bem amadurecida. Poderia mudar quando a animosidade diminuísse. Enquanto pudesse estar em casa, lutaria para ser ainda melhor, tentando tornar-me o homem que, imaginava, ela idealizara, revertendo o desmoronamento da minha vida.

Desse dia em diante meus dias eram sombrios, sem qualquer sentido. Trabalhava meramente por uma questão de honra e por saber que um dia a escuridão teria fim. Enquanto trabalhava, minha mente era povoada de diálogos e frases que eu ensaiava sem querer para dizer no dia em que minha vida fosse devolvida, quando ela me dissesse que tudo não tinha passado de um sonho. Por dentro, um bicho pequeno roia sem parar, causando dores muito agudas a cada pedacinho que arrancava. Sobre minha cabeça, um vento impetuoso fazia muito ruído, não me permitindo ouvir o som do mundo e dificultando-me a visão e a concentração. Via-me agarrado a um pedaço de tábua num mar encapelado, submergindo e emergindo numa seqüência interminável de ondas gigantescas que surgiam da escuridão.

A quem contar o meu martírio? Quem se interessaria por minha dor e quereria socorre-me? Quem poderia, ao menos, compreender o quanto eu estava sofrendo, quão insuportável era a dor que me consumia obstruindo minha vida? Quem poderia ter tanta pena de mim para poder tira-me da dor e devolver-me a amada?

Olhava para os lados e não via sequer uma boa alma samaritana. Então seguia amordaçado e confinado naquele turbilhão tempestuoso, sem conseguir distinguir os pensamentos, sem quem me ouvisse os rogos amordaçados. Trabalhava qual zumbi, absorto em minha tortura e meu pensamento discursava de cansar, falava mal, exaltava-se, defendia meu direito, me acusava, absolvia meus erros, me consolava, torturando-me a cada pulso.

Meu amigo “Véio” me ouvia alguma vez. Sentado à alguma mesa, em intervalos do trabalho, dizia-lhe que minha esposa terminara nosso relacionamento. Sem poder compreender que lhe pedia socorro, ele ficava a me olhar em silencio, apenas deixando escapar dos lábios um indiferente “pois é!” e não fazia qualquer menção de me socorrer ou escabelar-se desatinado por causa da minha tragédia. Somente seguiu me ouvindo e deixando que eu falasse quanto quisesse.

Ele não a conhecia. Só então é que passei a falar nela. Desde o dia vinte e três de agosto até o dia vinte e cinco de setembro estivemos ainda na mesma casa. Nesse intervalo fui marido e amigo muito melhor do que eu tinha me esforçado para ser desde 1991, quando nos conhecemos numa pensão em Caxias do Sul. Marido somente na expressão, pois logo ela me correu da cama, fazendo-me dormir na sala. Todavia, durante esse mês muitas vezes sua decisão sobre a separação oscilou. Fez-me diversas propostas estranhas para ficarmos juntos. Eu aceitava a todas, mas antes que desse a resposta ela já tinha mudado de idéia e decidido que nem assim queria ficar comigo.

Naquele ínterim fizemos compras pela última vez. Quando voltávamos do hipermercado dei uma passada no bar para apresentá-la ao “Véio”. Sempre tivera orgulho de apresentá-la como esposa. Orgulhava-me dela, o que já não a interessava. Portanto, queria salvar a lembrança do meu casamento, mostrando para as pessoas daquele bar que eu não era um mero decorador de paredes de bares, mas que tinha uma família muito requintada.

SEGUE