Um Vestido Florido
Os sapatos estão com creolina de molho até amanhã, não é bom para o couro, mas preciso ficar alerta, à espreita estão os vermes que entrarão pelos solados, corroerão minhas unhas e dançarão com volúpia na minha corrente sanguínea até pousar em meus intestinos.
Ainda repousa na cerâmica do quintal uma fina camada de água sanitária, que se ocupará de todos os eventuais micróbios que resistiram ao desinfetante hospitalar.
Na sala, os sofás revestidos de plástico siliconado ainda refletem as gotículas de lisofórmio e o vidro da mesa está que não tem uma digital gordurosa, assim como as vidraças das janelas.
Nas paredes passei milimetricamente um pano embebido em álcool a 95º, difícil, mas não impossível de achar.
No teto, mais detalhado que o próprio Michelangelo na Capela Cistina, foi o rodo metálico com um perfex com vinagre, pois me falaram que é um excelente desinfetante e outro dia eu vi um calango nojento rondando o lustre. Lustre, aliás, do qual já me desfiz, afinal era um chamariz horrendo de insetos noturnos, me remetendo à lembrança da casa paterna onde havia um terrível globo de vidro no meio do teto da sala, que só servia para cemitério de formigas voadoras.
Agora falta retirar a poeira dos móveis, embora eu tenha feito isso hoje de manhã, mas no momento em que abri a porta para ir ao quintal sei que a poeira já se instalou por lá... E poeira não é só feita de terra, como se isso já não fosse o suficiente, a poeira é composta de restos de pele e cabelos e sabe-se lá mais quais excrementos humanos e pustulentos. Aquele velho esverdeado da casa da esquina... Imagina se a nojeira dele viaja no ar e vem pousar em mim? Ai, vou logo ligar os purificadores de ar, os ácaros do velho vão morrer esturricados.
Cozinha? Tudo em ordem, pia, fogão, panelas. Geladeira. Ai... estes ovos comprados ontem, mesmo mantidos sob refrigeração... sei não. Melhor descartar. Eu poderia comer uma laranja, mas aí iria sujar uma faca.
Banheiro. Meu maior pesadelo. Passei X14 em tudo, quase desmaio lá dentro, mas sei que está limpo.
Minha cama. Lençóis escaldados, travesseiros aspirados, passei vaporeto em tudo. O espelho cristalino, escova de cabelos desinfetada.
Acho que agora posso dormir.
Será que não esqueci nada? Tão difícil pegar no sono logo de cara, o corpo está cansado, mas a mente está desperta como um moleque de cinco anos antes da festa de aniversário. Adoro o silêncio deste quarto, o silêncio das minhas coisas limpas, minhas mãos... Ai! Não lavei as mãos antes de deitar! Pus tudo a perder, vou ser obrigada a trocar os lençóis... em que mais encostei com estas mão porcas? Preciso levantar e...
- Quem é você???
- Boa noite, dona.
- Socorro! Polícia! Um ladrão!
- Não sou ladrão, dona. Para de fazer escândalo. Só quero um canto
pra me encostar por hoje...
- Um canto? Um canto? O senhor ponha-se daqui pra fora e não ouse encostar em absolutamente nada, ouviu? Nada!
- Dona, fica calada ou vamos ter mais um assassinato esta noite.
- Mais um ass.... pai do céu! Não faça nada comigo, por favor, seu assassino, digo, matador, digo, prezado senhor...
- Ta, ta. Muito papo. Tem um rango decente aí?
- Comida? É, bem... nada pronto. Acho que não tem nada mesmo. Por que o senhor não vai aterrorizar o vizinho da esquina? É um velho meio esverdeado, ele não vai se importar, vai até gostar da companhia...
- Dona... Já falei que é melhor a senhora cooperar. Fica aí de boa, não vou fazer nada, só preciso comer alguma coisa.
Olha só esse homem... Todo sujo, emporcalhando minha cozinha, contaminando o ambiente. Que escolha difícil: me submeter à morte imediata pelas mãos do assassino, ou à morte lenta pelos micróbios que ele está espargindo?
- Não mexe aí, isso é lixo, é sujo...
- Vou mexer sim, preciso comer e nessa geladeira só tem porcaria.
Não é porcaria... São grãos e vegetais saudáveis, lavados com água purificada com ozônio. Mas o que tal criatura vai entender de ozônio?
- Ovos...
- Estão podres, pelamordedeus!
- Estão ótimos. Onde tem uma panela? Ah. Achei. Liga aí o fogão e me arruma alguma gordura... azeite? Ora, ora, vai sair melhor que a encomenda. A dona não teria aí um queijinho guardado?
- Só tofu...
- Vixe. Esquece.
E se eu ligar pra polícia? Por que não pensei nisso antes?
- Não sai daí, dona. To te vigiando. Hmmm sente o cheirinho... Uma omelete digna de um rei. Onde tem um prato? Ah... porcelana chique.
E nessa caixa?
Ai, não, não, não... Meu faqueiro importado...
- Uh! Talheres de ouro, dona???
- Não são de ouro, ignorante. Só metal dourado.
Que, aliás, vou ter que escaldar amanhã, junto com o conjunto de porcelana, pra tirar seus micróbios.
- Muito bacana. Vai omelete aí, dona?
- Deus me livre, esses ovos estavam no lixo e estão podres. Você vai ter uma diarréia digna de um rei, isso sim.
- Sem problema, eu não passo dessa noite mesmo.
- É pra eu ter pena desse seu fatalismo besta?
- Na verdade, não... É só pra ficar avisada, vai ter um cadáver no seu assoalho branco muito em breve.
CADÁVER???? O meu ou o dele?
- Olha, esse seu papo não me assusta, ta? Fico mais assustada com a sua imundície que vai me adoecer e, aí sim, vou morrer em breve. Mas não serei um cadáver no assoalho, por que serei acolhida num hospital limpo e asseado.
- Ai, ai... A senhora me diverte. Não se assuste, o defunto serei eu mesmo. Como falei pra senhora no começo do nosso papo profundo, só quero sua casa pra me encostar por hoje. Amanhã de manhã eu decido como dou cabo de minha vida.
- Suicida? Mas ora vejam... Parecia tão dono de si e agora se mostra tão covarde.
- Quer alguém mais dono de sua própria vida que um suicida?
- Covarde. Não vai enfrentar a justiça terrena e espera o que da justiça celeste?
- Que justiça celeste? Que céu, madame? O céu dos brancos ricos, com nuvens fofinhas e anjos de liras douradas? É pra lá que a senhora pretende ir? Esqueça... Não há nada depois dessa vida, só os vermes pra decomporem nossa carne e a gente virar estrume.
- Nada disso, nada disso. Eu acredito no paraíso e me preparo pra ele todos os dias.
- Como é mesmo que a senhora se prepara? Limpando essa bosta de casa? Lavando as paredes com água benta?
Água benta? Será que tem efeito desengordurante? Por que esse ovo frito acabou com meus azulejos e ele nem ligou o suggar.
- Me preparo mantendo o coração limpo como essa cozinha estava antes de você chegar.
- Seu coração é limpo? E quem disse que a pureza está na limpeza, dona?
- Claro que está. Tudo que é limpo é puro.
- A senhora é limpa?
- Claro que sou, tomo três banhos por dia e utilizo produtos dermatologicamente testados...
- Dermatologicamente testados em cães ou em ratinhos brancos?
- O senhor não leva nada a sério, não sei por que perco meu tempo e meu latim.
- Ai, ai... Eu já disse que a senhora me diverte? Senta aí, dona, me faça companhia de maneira decente... Se bebe alguma coisa além de desinfetante nessa casa?
Grosso e estúpido.
- Beber o que? Álcool? Sou abstêmia.
- Imaginei. O álcool da senhora deve estar nas paredes, né não?
Ué... como ele adivinhou? Será que ficou muito fedido? Mas o álcool evapora tão rápido.
- Não se preocupe, dona, prometo não contar pra ninguém.
- Ai, ai, ai, viu? Que me importam seus comentários? Ninguém do meu círculo de amizades acreditaria em uma palavra proferida por uma boca tão... tão...
- Tão cheia de ovo frito? Há, há. Quem sabe o velho esverdeado da esquina? To ligado no papo, dona...
- Então vou prestar mais atenção ao que digo.
- Pra que? Já falei que amanhã vou vazar desse mundo torto. E até amanhã só pretendo bater papo com a senhora mesmo, dona.
- Então devo me acostumar, não é? Só não espere que eu vá gostar disso...
- Melhor não, dona. Se a senhora pegar afeição vai sofrer com a minha morte e já tem gente demais sofrendo com isso.
- Ora vejam só. Afeição a você? Podre e imundo, acabando com minha cozinha.
- Podre e imundo... Mas enchendo essa casa de voz.
- Que acha você? Que sou uma velha solitária e infeliz? Tenho inúmeros amigos, fique sabendo.
- O leiteiro? O carteiro? Ah! Já sei... O entregador de pizza. A senhora come pizza de tofu, dona?
- Que conversa... Tenho amigos verdade, que me visitam, que gostam de mim e da minha companhia.
- Quem? Fala só um.
- Ah... O Cleber e a Soninha. São um casal amigo, com quem costumo jogar buraco.
- E quem é o seu parceiro?
- Depende, ué. Pode ser a Carminha, a Emengarda... O Mário, marido da Joana, por que a Joana não sabe jogar nem trinca e...
- Fala um pouco da Emengarda.
- Ai... Por que logo dela...
- Sei lá, gostei do nome.
- Ela não é tão amiga assim.
- Fala dela assim mesmo.
- Por que devo obedecer a você?
- Por que eu estou armado, olha aqui meu trabuco, sou mais forte, to mais entediado. Vai logo, dona!
- Atitude bem masculina mesmo, se esconder atrás de um revolver...
Ai meu deus do céu... Perdi a noção do perigo, to provocando um assassino armado.
- Sou um homem, como quer que eu aja? Feito mulherzinha que quer resolver tudo no papo?
- Argumentos consistentes necessitam de neurônios melhores qualificados, coisa que só a mente feminina tem.
- Isso é fato, dona. Incontestável. Obrigado por me lembrar. Agora, vamos à Emengarda.
- Você não vai esquecer isso mesmo, né?
- A Emengarda? Agora que percebi seu incômodo em falar nela...
Jamais! há, há, há... Há tempos eu não ria assim. Eu fiz bem em não
ir pra casa do vizinho esverdeado. Velhos costumam ser depressivos... Não que a senhora não seja depressiva, mas é muito divertida.
- Ninguém nunca disse que eu era divertida...
- Não? Nem a Emengarda? O que ela lhe fez mesmo? Roubou no buraco? Desceu uma trinca suja pra prender seu ás de copas e não deixar a senhora fazer uma canastra real?
- Você parece entender o que fala...
- Buraco, dona? Modéstia à parte, sou bom nisso.
- Ah... Duvido. Deve ser jogador de truco, isso sim.
- A senhora ta me trucando??? Meio pau, ladrão! Eu topo o buraco, onde estão as cartas?
- Eu vou jogar com meu seqüestrador? O que é isso? A síndrome de Estocolmo?
- Há, há, há... A senhora é mesmo engraçada, dona. Não estou lhe seqüestrando nada, apenas o seu tempo. E o seu tempo, até onde posso ver... Não vale nem duas mil dracônias javanesas. Onde está o baralho?
Dracônias javanesas?
- Ta na sala, vou buscar.
- Sozinha, não, dona... Que o telefone dos canas deve estar no corredor, né? Vamos juntos, de repente na sala tem uma mesa mais apropriada, com aquele pano verde de pôquer que aparece em filme americano.
- Vamos, então? Tenho mesmo uma mesa de jogo, como adivinhou? Só que o pano verde está sujo, vamos ter que jogar com o vermelho, que é até mais chique... Coisa de cassino, meu filho.
- Olha que bacana... Esse é o baralho? Acho que preciso ter cuidado, baralho novo tirado da caixa é coisa de viciado...
- Não... É só coisa de profissional. Dois baralhos? Quatro coringas? Jogo duro?
- Espera, vamos ver as regras antes... Lixo e descida?
- Lixo, só pra descer e tem que mostrar a carta. Descer, na primeira só de cem pra cima. Morto, só se bater descartando, bater, só se pegar o morto.
- Certo, certo. Já que a senhora está embaralhando, eu dou as cartas.
E agora? Ofereço ou não?
- Olha... Já que você está jogando comigo... É de praxe um licorzinho leve...
- Uh! A abstêmia liberou a adega! Licor de que?
- Olha aqui na cristaleira... Manga, cupuaçu, côco, mangaba, pequi...
- Pequi?! Desperdício de álcool e garrafa. E rótulo. Mas o que é isso aqui?
- Ah... Tinha esquecido que isso existia. Era do falecido, mas ele largou ai, disse que vinha buscar depois e...
- Mortos que voltam pra tomar cachaça mineira, dona?
- Falecido é maneira de falar... A gente teve um relacionamento que acabou.
- Sinto que a Emengarda tem algo a ver com isso.
- Você devia montar uma barraquinha de adivinhação, tem bola de cristal, é?
- Não... Só conheço a alma das pessoas. Principalmente as solitárias como a senhora.
- Insiste em me rotular de velha solitária... Por que, senhor conhecedor da alma humana?
- Olha pra sua casa. Tudo um brinco de limpeza... Cheiro de desinfetante e creolina pra todo lado. Ovos novos jogados no lixo... Um armário lotado de licores de gosto duvidoso, com uma caninha fechada e empoeirada no fundo... Fala quando foi a última visita que recebeu.
Ai... Não posso chorar agora, não na frente de um desconhecido de quem nem sei o nome...
- Ta, dona, esquece. Não vá chorar na frente de um desconhecido de quem nem o nome você sabe. Vamos jogar e falar da Emengarda. Que tal?
- Para de ler meus pensamentos! Isso me constrange. E outra coisa. Me chamo Valquíria, prazer. Qual é o seu nome?
- Eliézer. Prazer. Por um momento achei que a senhora fosse recusar o aperto de mão, mas vejam só... A dona chacoalhou meus ossos com a firmeza de quem acredita. Gostei.
- Hmpf. Eu não tinha lavado as mãos mesmo... Acordei por isso, sabia? Aliás, levantei da cama por isso, por que não tinha dormido ainda. Eu demoro a dormir.
- O melhor remédio pra dormir rápido é cansar o corpo.
- Agora você não leu sua bola de cristal... Você acha que é fácil limpar essa casa? To com o corpo doído, Eliézer, as costas estão travadas.
Eliézer. Belo nome. Forte, apresentável. Eliézer de que, será?
- Então relaxa, Valquíria, aproveita e segura aí esse rei de espadas, que eu sei que você tá louca por ele.
- Nunquinha. Vou no monte que é melhor. Olha aí! Só me vem carta ruim... Onde está a regrinha primeira dos jogadores?
- Que regra?
- Azar no amor, sorte no jogo. Estou com azar em tudo, não é justo.
- Olhe, olhe... Sua sorte pode estar mudando...
- Nada... Outra carta péssima, pode levar pra você.
- Não quero não... Ainda não dá pra mim... Mas a sorte que eu me referia era a outra, a do amor.
- Essa daí eu já desisti. É só sofrimento e desilusão.
- Deixa de ser amarga, Valquíria. Fechada nessa casa é que você não vai nunca achar um substituto pro falecido.
- Não quero um substituto, aquele canalha só soube me pilhar, levar o que construí com tanto esforço, me diminuir. Só me fez mal. Quero um homem de bem, trabalhador, que saiba me valorizar, que me ame... Entende? Ame a mim e não às minhas coisas.
Porque digo essas coisas a esse homem que mal conheço? Pelo menos agora sei o seu nome.
- Eliézer...
- Diga, Valquíria.
- Fala um pouco de você, pra eu parar de pensar que estou me abrindo com um desconhecido...
- É um papo muito chato. Minha vida é muito chata.
- Mas você já sabe demais de mim pra eu não saber nada de você. Não é justo. Epa! O que é isso aí?
- Ué... Cem na descida, não era a regra?
- Não pode canastra suja na primeira descida. Devolve o lixo.
- Ei... Isso você não tinha falado. Mas não vou devolver o lixo não. Toma outra descida de cem, impa, com cartinha do lixo. Tudo certo agora, dona Valquíria proprietária do livro de regras do buraco?
- É... Vá. Ta bom. Vai começar com copas? Bom sinal... Ta lhe faltando o que? Um ás, um rei, uma dama? Há, há, há. Ta tudo comigo. Essa partida vai ser bico. Bico!
- Obrigado pelo aviso, logo se vê eu não é tão boa jogadora como eu havia julgado... Melhor assim, tem tempo que não jogo, vou ganhar mais fácil.
- Deixe de arrotar arrogância e fale logo da sua vida. É casado? Tem filhos? Trabalha em que, além de seqüestrador profissional?
- Calma, mulher. Vamos por partes, então...
- À lá Jack o Estripador?
- Há, há... Boa piadinha. Vou usar um dia, se me permite... Isto é... Vou ter que usar hoje mesmo e com a senhora. Isso não vai ter muita graça. Deixa pra lá.
- E essa história de morte? Por que morrer? Desilusão amorosa ou tráfico de drogas?
- Nenhuma das duas coisas.
- Ai, Eliézer... Não sou eu quem tem a bola de cristal, abre logo o jogo.
- Abrir meu joguinho pra você? Ta doida? Vou ganhar a partida, vou até pegar o morto agora, olha aí.
- Deixa eu conferir tudo antes... Sim, está certo... Epa! Cadê o sete daqui?
- Calma lá... Só ta escondido embaixo do oito. Ta tudo aí, se eu for roubar não há de ser pra ser pego, certo? Meu morto, se me faz favor...
- Toma o morto e não se atreva a roubar de mim, vou descobrir sempre. Cadê a história? Também eu fiquei entre entediada e curiosa, agora.
- Só se você contar da Emengarda, por que eu já tava na fila dos curiosos antes, lembra?
Falar do demônio pro capeta...
- Esquece isso...
- Ela foi amante do falecido?
- Tentou ser... Mas é muito feia, faladeira e burra. Mais burra ainda, porque o falecido fez sexo com a rua inteira, só não com ela por que ela queria, acho.
- Então o falecido era comedor... E comia direitinho?
- Nada... Pelo menos não a mim. Mas eu não gosto de sexo. Fica difícil pro homem, né? A mulher deve facilitar...
Ui! De onde vieram essas palavras que nem pra mim mesma eu permito?
- Qual foi a cartilha machista que a senhora andou lendo? Alguma amiga que tentou lhe consolar jogando a culpa no seu colo? Nada disso, moça, o sexo, quando feito a dois, é feito por dois, entrega mútua, amor e prazer dividido e multiplicado. Se for preciso chamar a atenção da parceira antes... É pra isso que servem as tais preliminares. E se a parceira quiser ficar só nas preliminares... Ela terá todo o direito.
Ele deixou de me chamar de “dona”, agora virei “moça”, será que deixei de ser “velha solitária” no seu conceito?
- Falou como mulher agora... Muito bem, gostei. Sua esposa deve ser uma mulher muito feliz...
- Ta louca pra saber se sou casado... Não, não sou. Já fui, mas não deu certo. E... Voltemos à vaca fria... A raiva da Emengarda se resume a isso? Se o falecido fodeu a rua inteira, por que a raiva concentrada justo na mulher que ele não fodeu?
Porque permito tal linguagem em minha casa? Por que isso não me incomoda? Fico vermelha até com filme em inglês... Fuck isso, fuck aquilo. E o camarada aí pode falar em português traduzido, sem problemas. Deve ser a síndrome de Estocomo mesmo.
- Não sei. Ela me disse uma vez, sem querer dizer, sabe como é? Então... Disse que tinha feito sexo com ele, mas tinha se arrependido, pois tinha perdido a minha amizade.
- Então?
- Então eu fui perguntar pra ele.
- E o falecido? Bati. Há... Eu sabia que ia conseguir! Você é páreo duro, Valquíria, mas é pata pra mim.
- Ta cantando de galo muito cedo... Aí nessa mesa não tem cinco mil nem de longe. A parada vale cinco mil e vamos ter que jogar de novo. Isso é sorte de principiante. Deixa eu contar meus pontos.
- Cem da batida, cem do morto, mil aqui, duzentos, duzentos, cem nessa sujinha... Mil e quinhentos. Nunca fiz um escore tão baixo. Pontos das cartas... Dez, vinte...
- Ai, conta baixo, Eliézer. Aí, fechei mil duzentos e cinqüenta e cinco.
- Tem cadernetinha de anotar os pontos? Que coisa singela,
Valquíria... Você é mesmo engraçada. Eu embaralho agora, deixo você dar as cartas, preciso garantir uma mão boa pra ganhar de novo, só que com escore melhorzinho, esse aí foi vergonhoso. Tem coringa mesmo nesse baralho?
- Nãaaao... Eu tirei os coringas e você nem viu... Há há há.
- Que sem vergonha... Mas, beleza, vamos sem coringa mesmo. Fica mais desafiador... E aí? Falou pro falecido o papo da Emengarda... E?
Como explicar o que não tem explicação?
- É que foi a primeira vez que eu soube de qualquer coisa... Bem, soube de alguém me falar diretamente, eu já desconfiava, algumas pessoas tinham mandado eu abrir os olhos, mas eu achava que era só intriga.
- Foi a primeira vez que falou nisso? E há quanto tempo estavam
juntos? Duas semanas?
- Dez anos...
- Cacete! Em dez anos você só “desconfiou”???
- Tinha outras coisas envolvidas, outros fatores...
- Pavor de ficar sozinha, por exemplo?
Não sei se quero falar sobre isso. Não tinha falado antes, nem pro
analista que me cobra caro a hora... Mas ao mesmo tempo quero falar, preciso falar... Por que me devasso com esse homem que apareceu do nada e não sei pra onde vai? Segundo ele vai pra morte.
- Você vai mesmo se matar amanhã?
- Vou. Mas não tenha medo, não vai ser na sua casa, não, nem no seu assoalho branco da cozinha.
- Por quê? Por que se matar?
É um homem bonito, sensível e inteligente, afinal. Só está sujo.
- Por que alguém se mata, Valquíria? Por que não tem mais opções, por que zerou o saco de oportunidades. Não terminamos o papo da Emengarda ainda, para de tentar me roubar.
Roubar, roubar... Roubar de mim essa história porca e feia?
- E o que você quer saber, afinal? Falei com o Antônio, ele riu da minha cara, disse que eu parasse de me preocupar com porcaria, pois ele nunca tinha nem olhado pro lado da Emengarda, já que ele tinha coisa mais interessante pra fazer. Não sei de onde tirei forças, mas empurrei ele, fisicamente mesmo, ele caiu, veio pra cima de mim e me espancou até tirar sangue.
- Estou satisfeito, Valquíria, você já pode parar...
- Juntou meia dúzia de roupas numa mochila, disse que estava cansado de mim e depois mandava buscar o resto das coisas...
- Ta tudo bem, mulher, chega.
- Aí, antes de sair por aquela porta, mesmo ali embaixo do portal, disse que tinha feito sexo com fulana e cicrana, gente que eu só sabia da existência de longe...
Que toque é esse? Por que ele está aqui em pé do meu lado, pegando em meus cabelos? Vai me infectar toda? Por que não consigo parar de falar e chorar e tudo ao mesmo tempo? Por que falar nisso?
- Ei... Valquíria... Já entendi. Ta legal. Fica bem. Não vamos mais remexer a ferida, certo?
Essa mão... Agora me permito pegar a mão porca do seqüestrador e chorar sobre ela? Síndrome de Estocolmo, nada... O nome disso é carência afetiva.
- Quer uma água? Bebe aqui um pouco desse seu licor horroroso...
- Eu não bebo... Já disse que sou abstêmia.
- Um gole ou dois vão fazer sua dor mais suave.
Bebo ou não? Ah... Beber é o menor dos meus problemas. E beber pode fazer os grandes problemas ficarem um pouco menores. Redução em escala.
- Isso, Valquíria. Assim você vai ficar melhor.
Álcool aliciante.
- Eliézer, você tem toda razão, esse licor é horroroso.
- Eu falei... Tenta outro, vê esse aí de manga.
- É... Melhorzinho.
- Você ta bacana, agora?
- Não. Isso aconteceu há dez anos e ainda dói igual.
- Ah... É por isso que a cachaça ta tão boa... Envelhecida. Vamos voltar ao jogo, ainda preciso ganhar de você.
- Muito bem, a conversa sobre Emengarda acabou. Vamos falar de você e de sua morte anunciada.
- Ah, Valquíria... Você quer me ver chorar também? Vai vir aqui e passar a mão nos meus cabelos? Depois vai me oferecer licor de pequi?
- Foi o de pequi que eu bebi primeiro?
- Não foi por mal... Foi só a primeira garrafa que peguei...
- Foi maldade, sim... Era a que você mais detestava.
- Como posso detestar algo que não conheço? Não provei a dita cuja.
- Foi a que mais você xingou quando lhe mostrei na cristaleira...
- Olha só... Você ta ligada no papo também. Há há há. Você é muito divertida mesmo...
- Vou começar a acreditar nisso. Vou virar comediante de televisão e ganhar de volta o dinheiro que o pulha me levou.
- Foi tanta grana assim?
- Até que nem... Já recuperei tudo... Mais a minha juventude, o meu tempo. Aquele tempo que não vale nem duas mil dracônias javanesas.
- Vai usar o que eu disse contra mim? Quanta maldade. Indigno numa dama tão nobre.
- Ora, ora... E eu que era apenas uma velha solitária, agora sou nobre dama? Quando a noite findar você será um cadáver e eu mais infeliz.
- Você é Valquíria. E eu sou Eliézer. E essa noite não precisa acabar agora, se você não quiser.
- O que fazer pra noite durar?
- Que música é essa?
- O vizinho esverdeado tem insônia...
- A dama aceita uma contra-dança?
- Não sei mais dançar... E o que é isso? Uma valsa?
- A dama não precisa fazer nada, só precisa confiar em mim, sou eu quem vai guiar.
A mão me enlaçou, já não posso resistir, que homem leve, que olhar profundo...
- Pra onde olha, Eliézer?
- Pra dentro de você.
- Dentro de mim não há nada que se aproveite.
- Errada, você esta errada. Dentro de você há uma mulher linda, de
lenço branco na mão, parada numa janela esperando um cavaleiro em uma montaria elegante.
- E você é o cavaleiro?
- Não, Valquíria... Sou apenas parte do sonho, ou do pesadelo. Sou seu seqüestrador, dançando uma valsa tocada por um velho verde. Sou tão ferrado, tão sem chão que não merecia esta dança na madrugada... Mas você me recebeu, aceitou o convite.
- Você é um homem doce, afinal, sensível, amável, excelente dançarino de valsas tocadas por velhos verdes.
- Quantos homens tiveram essa oportunidade de tocar em seu rosto? Sua pele, seu cheiro, sua boca...
Um beijo... Um beijo e outro, mais beijos... Mais danças na madrugada, eu aqui aninhada no colo desse homem tão belo e tão meu nesse momento.
- O velho foi dormir... Desligou o som.
- Você não tem valsas aí?
- Não... Só árias tristes.
- Posso cantar?
Ai... a voz desse homem... Tudo nele me inebria, estou bêbada de Eliézer. Preciso dizer isso:
- Estou embriagada de você.
Me pegou no colo, vamos ao quarto, nunca ninguém foi tão gentil, é
como se fossem as núpcias da moça na janela, a moça de lenço branco na mão esperando o cavaleiro... Seja meu cavaleiro, Eliézer, me liberte desta clausura, me liberte da dor, me liberte da amargura, das mágoas, do rancor que vaza de meus poros e inunda a cama, saindo de mim pra nunca mais voltar... Liberta-me de mim, Eliézer.
- É dia, Valquíria.
- Não vá...
- Preciso retomar meu destino.
- Não se mate...
- Não há opção.
- Não posso eu entrar no seu saco de oportunidades?
- Não há mais saco de oportunidades... Não posso ser eu a ferrar o destino de outra pessoa, ainda mais o seu... Valquíria linda, doce, meiga, translúcida, diáfana... Nunca uma mulher me amou como você. Nunca eu amei uma mulher assim.
- Então? Vamos fugir, mude de nome, mude de história, comece de novo...
- Não tenho o direito de fazer isso com você.
- Me abandonar? Como fez Antônio?
- Psssss... Calma... Você estava opaca e feia sob um manto de rancor. Agora sabe que pode ser amada de novo, está liberta, Valquíria.
- E você continua a adivinhar meus pensamentos... Por que não se liberta também? Não soube eu retirar os seus rancores? Me ensine como fazer isso...
- Não são os rancores, minha flor, nem o arrependimento. É a certeza sobre minha sorte, minha terrível capacidade de cometer atrocidades a quem amo... Habilidade em destruir, fazer o mal.
- Qual foi o mal que você fez esta noite?
- É disso que falamos, minha linda... Uma noite, duas... Uma semana. Um ano, dois. Questão de tempo até eu me tornar vil outra vez. Não posso mais com isso. Ninguém pode. Nem você poderá. E eu me mataria se fosse o seu novo “falecido”.
- Mas você vai ser mesmo um falecido, por que quer dar cabo à própria vida, uma vida que agora eu amo e vou sofrer em ver acabar... Por que não me dá a oportunidade de tentar?
- Eu avisei pra não se afeiçoar...
- Avisou na hora errada.
Aninhada nesse colo, com esse homem cheirando meus cabelos, posso enfrentar qualquer destino errado, qualquer estrada torta, qualquer vilania ou atrocidade...
- Adeus, Valquíria. Saia hoje, veja o sol, dê bom dia ao velho verde e o agradeça pelas valsas... Compre um vestido florido e vá pra rua mostrar sua felicidade. Lembre só dela. De mais nada. Guarde meu amor aí dentro, junto com a moça na janela.
- Não se mate...
- Aí pode haver uma oportunidade. O amor que você me deu essa noite pode mudar minha vontade.
- Jura?! Jura que não se mata e volta pra mim?
- Juro que você nunca vai saber.
- Não seja cruel.
- Cruel, não. Só irônico.
- Não vá... Não me deixe saber de sua morte numa manchete de jornal...
- Prometo que não deixo você saber pelos jornais.
- E vem me ver antes?
Segura o meu rosto e fita meu interior, me atravessa como um raio x, nada há o que possa ficar oculto, agora.
- Não esqueça o vestido florido. E o agradecimento ao velho verde. Ah! E joga fora toda aquela porcariada que usa pra limpar a casa. O puro nem sempre é limpo.
E se foi. O homem mais lindo e mais puro que já entrou na minha vida, saiu pela porta da cozinha... Já não sei se pra ninguém ver, ou se pra não usar a mesma porta que o Antônio usou.
E eu, estranhamente, não tenho vontade de chorar.
Tenho vontade de sair, ver o sol e dar bom dia ao velho verde.
E comprar um vestido florido.