Sapos têm olhos azuis
Ele nada tinha de atraente além dos olhos azuis. Tinham um ar entristecido e contrastavam com os cabelos embaraçados e compridos cor de mel.
A barba sempre por fazer, as roupas sem coordenação de cores e nenhum tipo de alinhamento.
Usava calças largas, camiseta branca quase encoberta por uma camisa xadrez e o velho tênis preto.
Era 1993 quando ela o viu pela primeira vez. Paralisou-lhe o corpo, o tempo.
Estava acostumada com os moços certinhos e engomados. Não, aquilo não poderia ser. Gostava dos cabelos impecavelmente penteados, daquele tipo nenhum fio fora do lugar.
Gostava de camisas e blazers e gravatas e sapatos e todas as gentilezas protocolares e de sentir perfumes que muitas vezes disfarçavam o cheiro da masculinidade que naquele ser quase primitivo se excedia.
Ele tinha ferocidade no olhar. Não era cuidadoso ao falar e isso o tornava único e todos os seus enigmas a atraiam.
Num dia inesperado cruzaram-se os olhares e pela primeira vez sorriram-se. Para ela fora um delírio, o chão virou espuma. Para ele foi uma corrente elétrica percorrendo-lhe todo o corpo numa espécie de hipnose entorpecente.
Os dias foram passando e os encontros “casuais” mais freqüentes. Neles já se notavam mudanças.
Ele tentava disfarçar seu jeito desarrumado e ela tentava desarrumar o seu jeito alinhado. Era uma tentativa de misturarem suas identidades e ainda nem se sabiam os nomes.
Faltava-lhes a coragem de abordarem um ao outro com um medo, ainda que remoto, de rejeição.
Pareciam querer sustentar aquele platonismo até que alguém resolvesse se render.
Com a desculpa de precisar de uma caneta para anotar algo importante, num dos encontros casuais ele tomou a iniciativa de abordá-la e lhe pediu esse favor. A garota tremia tanto que mal conseguia abrir o zíper da bolsa. Ao devolver a caneta ele agradeceu e perguntou-lhe o nome e a conversa então se estendeu por um tempo na lanchonete em frente ao lugar que casualmente se encontravam todos os dias.
Conversaram cerca de três horas e ao decidirem ir embora, sem nada dizerem um ao outro, beijaram-se longamente como resposta ao clamor de suas vontades mais instintivas.
Descobriram em seus jeitos diferentes de ser, um amor que jamais experimentaram até então. Ele fazia músicas para ela em seu violão marrom com a caixa lascada e ela, fechava os olhos para viver seus sonhos embelezados pelas canções interpretadas na voz rouca que fazia brilhar ainda mais aqueles olhos azuis.
O amor trai as expectativas. Não existe nenhuma certeza até que o corpo estremeça diante do olhar que paralisa até o tempo.
Ela já nem ligava mais para os cabelos desgrenhados e as camisas xadrez.
Vivem esse amor através dos anos como se tivessem acabado de se apaixonar.
Há quem diga que esse sapo é o príncipe que ela sempre procurou nos moços engomados.
E como na história infantil, bastou o beijo para viverem todos os dias felizes para sempre.
No amor não prevalecem padrões, e que bom seria se todos eles fossem para o inferno!