------ O BOIADEIRO-----------
 
 
Célia Regina não era bonita. Olhos grandes e expressivos,  olhar penetrante. Únicos atrativos na jovem séria e de poucas palavras.  A falta de atrativos nunca foi problemas para a moça mais rica do pequeno lugarejo.   Não foi surpresa quando anunciou a união com o solteiro mais cobiçado.
O noivo exibia um sorriso permanente enquanto recebia os convidados. Eugênio encontrava-se afogado em dívidas,  quando Célia entrou em sua vida. Os bons ventos tornaram a soprar e isto foi mais que o suficiente para garantir seu interesse na união.
Dois bois, uma infinidade de aves, carneiros  e porcos. Barris de vinho das melhores vinícolas, doces e bolo da capital. As cozinheiras da fazenda comandavam o batalhão de empregados, uma infinidade de pratos eram preparados para o grande banquete. Estimava-se que o velho Nicolau tinha gasto uma fortuna, quase o valor de uma de suas fazendas menores.
Aos primeiro acordes da Ave Maria, Célia atravessou a nave da igrejinha da fazenda. De braços dados com o pai, parecia muito serena; quase indiferente. 
A festança começou, uma multidão de convidados ocupou as mesinhas dispostas ao longo dos jardins. Um imenso salão de festas havia sido montado ao ar livre . Os fotógrafos não davam descanso e os noivos estavam sempre cercados de pessoas. Célia puxou o marido para um cantinho do salão:- Vamos embora, estou cansada. Quero sair daqui o quanto antes.
-  Não podemos fazer esta desfeita ao seu pai. Tem gente de toda parte do país, mais de mil pessoas. Até o governador, artistas, jornalistas...
- Não estou nem um pouco preocupada. Nós nem conhecemos esta gente, a maioria são amigos  do meu pai.
- Sinto muito Celinha, seu pai contratou uma dupla sertaneja famosa. Depois vai ter queima de fogos. Este casamento vai ficar na história da cidade.
- Vamos partir o bolo e sair de fininho. Isto é festa para dois dias.
- Mais um motivo para ficarmos, não quero perder a festa do meu casamento.
- Deixe estar, eu mesma fatio o bolo, sozinha! Imprestável!

Naquele momento, pensou no boneco que tinha à guisa de marido e sentiu um arrepio de saudades do peão. Célia Maria sempre foi uma moça fria e autoritária.  

Prática e racional, sem tempo para romances. Quando conheceu Bento, foi atração imediata, destas que só acontece uma vez na vida. Sentiu o fogo correndo nas veias e soube que não havia volta.  
 
 --- BENTO ------
Enrolando o cigarro de palha, perdido em pensamentos, o burburinho da festança cada vez mais alto:- Credo em cruz, por pouco não toma chumbo. Vem na ponta do pé, parecendo alma penada.
-'' Desconjuro'' , sai pra lá sô, vá de reto. Isto é jeito de falar? Cê tá aperreado?
- Não é da tua conta, ta querendo alguma coisa? Desembuche !
- Que grossura, o patrão mandou uma ceia pra nós, tem do bom e do melhor. Vim te chamar para espirar a festa, a patroa vai dançar a valsa daqui a pouco.
- Não quero nada, agradecido, pode ir embora.
Tonico não era má pessoa, só era curioso demais e vivia metido em confusões. Enquanto o moleque corria de volta para a fazenda, Bento ficou com dó e sentiu a ponta do arrependimento bater mais forte. Moleque largado no mundo feito ele, sem eira nem beira, um coitado que acabou nas terras do coronel Nicolau.
Quando Bento chegou à fazenda, ficou admirado com a riqueza das terras e o capricho dos empregados. Do casarão ao celeiro, tudo era muito bem tratado. Bento veio substituir um amigo acidentado, obra de um touro brabo. Famoso pela fama de matador.
No primeiro dia, decidiu encarar o tinhoso, o coronel mal continha a curiosidade de assistir a peleja. Torcia pelo animal e fazia apostas com o capataz.
Os olhos do bicho brilhavam de ódio, o povo da fazenda aboletou-se nas cercas, esperando a vitória do malvado. Bento estava pronto para o embate, quando ela chegou . 

Saltou do carro com passos duros, o silêncio cortante pegou o peão desprevenido:

  - Meu pai, que está acontecendo? Por acaso é meu touro premiado, que arrematei no leilão em São Paulo? O meu touro importado, mais bem nascido que muita gente, prestes a servir de espetáculo?
- Célia Maria, minha filha, não esperava tão cedo, como foi a viagem? Lembre os bons modos e cumprimente  seu pai que tanto te estima.
- Amado pai, estava frio demais em Lisboa  e resolvi votar mais cedo. E olhe o que encontrei, um circo de horrores, com meu Estrela Dourada. E quem é este homem?
-  Com todo respeito, jamais machucaria seu touro premiado. Ele é que tem quebrado muita gente.
-  É de pasmar! Acabou-se. Cada um que procure uma boa ocupação.
- O que é isto, Célia Maria? Mais respeito, já chega dando ordens.
- Meu pai, desculpa, fiquei nervosa. Trouxe presentes lindos para o senhor, quero contar as novidades. 

- Esperta esta minha filha, puxou ao pai, vamos ver estes presentes da Europa.

.
A primeira vez que Célia Regina e Bento mediram forças, ela saiu vencedora. Naquele mesmo dia, encontrou a moça no riacho, descansando:

-  Não quis assustar, trouxe o cavalo para beber, não vi a senhora.
- Não me assusto fácil, pode refrescar sua montaria.
-Não sabia que o touro era da senhora, ele quase matou meu melhor amigo.
- ''Só se respeita quem merecer ser respeitado''. Cansei de ver Estrela espezinhado, o senhor acha certo provocar quem está quieto?

- 'Este Touro bem puxou o feitio da dona, tem o temperamento brabo que só.
Bento não esperava tamanho atrevimento em uma mulher, principalmente quando ela aproximou-se e encarou bem de perto. 
O cheiro de colônia era o perfume mais doce do mundo, a atitude desafiando a reação. 

Bento não resistiu e beijou Célia, mal acreditando quando ela correspondeu apertando o corpo contra o dele. Homem simples, acostumado com moças que simulavam  recato, o ímpeto de Célia deixou o peão extasiado:- Que cara é esta, amansador de touro, não está acostumado com mulher?
- Descarada assim, não senhora.Nunca vi uma moça fina, tão oferecida.
- Então, é melhor se acostumar.Estou oferecendo o que tenho de mais valioso. 

- Uma jóia tão preciosa, nas mãos de um homem sem nada pra oferecer.

- Quem sabe estava destinada a ser sua, e de mais ninguém.

- Dona, a senhora, está me deixando zonzo com estas conversas.

- Você virou minha cabeça, no momento em que te vi, desafiando meu touro.

Célia nunca se sentiu tão à vontade com ninguém. O abraço de Bento era puro aconchego, encaixe perfeito, mistura de pele e carinhos. 
No sabor dos beijos, encontrou respostas, provou as delícias desejadas. Esqueceram as horas, tinham fome de viver, cada toque e descoberta. 

Bento viu o reflexo das suas buscas nos olhos de Célia, a urgência tão forte, uma certeza que finalmente, estava em casa. Bento era um romântico, só queria amar e ser amado. Ter uma razão para ficar, criar raízes e largar as estradas.
Célia e Bento tornaram-se amantes. No início era muita paixão, de mansinho o amor cresceu e ficou forte. Com o tempo, surgiram as cobranças e as dificuldades. Bento queria casar e assumir o sentimento que partilhavam. 
Célia adiava, desculpava-se e nada fazia. Começaram a discutir e trocar acusações. 

Um dia, Bento decidiu que era melhor para os dois, terminar tudo e cada um ir viver própria vida. Célia implorou que ele pensasse melhor, explicou que o pai não ia aceitar e que precisava de tempo. Bento foi irredutível, queria uma solução imediata. Meses depois, Célia anunciou o casamento com Eugênio.
 
    ----DESPEDIDAS ------
- Nico, pode chegar, to ouvindo seus passos faz tempo.
- Está ouvindo mal, se fosse uma onça, estava morto.
- Que está fazendo aqui? Largou sua festa e marido para vir pro meio do mato?
- Bobagem, quis te ver, fiquei preocupada com seu sumiço. Lá na fazenda não se fala de outra coisa.
-Nico sabe que estou bem, é o único que me importa. Não consigo entender este teu casamento repentino. Foi por pirraça? Para me humilhar?
- Não. Foi por apreço.  Eugênio foi  muito amigo, me apoiou bastante.
- Célia, eu não agüentava mais viver escondido. Em tão pouco tempo,você me esqueceu e casou com outro.
- Casei, mão não te esqueci.  Só queria me despedir, estou fazendo o que você sugeriu, tocando minha vida adiante.
- Era mentira, eu não sabia que ia te perder. Pensei que você fosse voltar. Esperei dias e dias. Eu fui orgulhoso, mas agora não me importo mais.  Vamos fugir, ainda é tempo, podemos ir embora.
- É muito tarde, eu não posso fazer isto com Eugênio. Meu pai nunca iria perdoar. É tarde demais. Bento me perdoe, não podemos ficar juntos, você não entende.
 
Bento não respondeu, saiu apressado, caminhando pelos campos e se embrenhando pelos charcos. Cada vez mais distante de tudo. Não queria pensar em nada, só queria ir para bem longe. A humilhação doía forte, sufocando, despertando mágoas e ressentimentos.
Bento lutava contra o desejo de matar Célia e depois, tirar a própria vida. O ódio e o ciúme queimavam no peito do boiadeiro. Precisava ir para bem longe, não podia cometer tal loucura, ele amava Célia mais que tudo na vida. 
Não suportava a idéia de Célia estar nos braços de outro, não queria pensar, não podia voltar, não podia matar, não podia...e a escuridão  da mata cerrada, tragou o homem...
 
Nunca mais ouviram falar de Bento. O povo começou a criar lendas, histórias contavam, que alguma criatura mágica devorou sua alma atormentada. Outros juravam, que uma princesa da floresta o seduziu e cativou. 
Ou ainda,  que foi engolido por uma imensa sucuri.
 Durante muito tempo, o som de qualquer  berrante ao longe, era o lamento de Bento, correndo pelos prados. Chorando o amor perdido, da amada.

Nunca houve explicação, nos primeiros anos, Célia mandou os melhores batedores vasculharem toda a região . Contratou investigadores,  ofereceu recompensas  e colocou anúncios em muitos jornais. Ao final de dez anos, desistiu de vez e aceitou que jamais tornaria a ver Bento.
 
-----O FRUTO ---------
 
O rapaz e o velho caminhavam pela estradinha de terra batida. Iam de braços dados, conversando sobre as histórias e fazendo jogos de adivinhação. Célia observava de longe, sorrindo deliciada com a cena. O divórcio havia desgastado suas forças, Eugênio insistiu em receber uma indenização absurda.
Célia voltou para a fazenda, quando o velho Nicolau sofreu um grave derrame. Foi uma emoção muito forte, não tinham mais o gado nem tantos empregados. A casa precisava de reformas urgentes, a fazenda tinha que tomar novos rumos ou se perderia. Célia estudava a idéia de um pequeno hotelzinho:

-  Bentinho, traga seu avó para dentro . Está esfriando, vamos logo, o lanche está na mesa.
- Pai, o senhor não deve ir pelas idéias do seu neto. Ele recém terminou o curso de fisioterapia.
- Ele esta formado, sabe muito bem o que eu posso ou não fazer.
- É um milagre o senhor estar tão bem, falando e caminhando normalmente.
- Milagre não senhora, vovô e eu demos muito duro. Exercícios não é vô? Dois anos de muito trabalho e disciplina.
-  Sua mãe não sabe de nada. Aqui quem manda é o doutor Bentinho.
- Dois contra um não vale. Venha pai, Bento vai tomar um banho.
- Escute Célia, porque levou tanto tempo para voltar? Sempre soube que Bentinho não era filho daquele traste.
- Pai, Eugênio  também é o pai de Bentinho. Ele ajudou a criar o menino e tem alguns méritos.
- Nunca vou me perdoar. Bento era um homem de caráter, pobre porém honesto. Eugênio...
- Naquela época ,  o senhor pensava de outra forma. Lembra que ameaçou mandar matar o Bento? Praticamente pagou o Eugênio para casar comigo. Mas eu não guardo mágoa, eram outros tempos.
- Me arrependi, estraguei sua vida. Aquele aproveitador, quase destruiu nosso patrimônio.
- Eugênio é viciado em jogo, bebida, falcatruas e afins. Gastamos para pagar os agiotas. Já passou, não quero que                 Bentinho odeie o pai.
- Ele sabe que não é filho dele, mas nunca vai conhecer o pai verdadeiro por minha causa.
- Já acabou, vamos viver da melhor forma possível o presente. Remoer o passado é besteira.
- Como você está mudada, nem parece a Célia Regina de antes. Vou esperar meu neto para tomar o lanche.
Célia sorriu e foi para varanda assistir o por-do sol. Gostava de sentar no velho balanço e pensar na vida. 
Quase sempre, sonhava acordada com o Bento. 
No sonho, estavam juntos, abraçados e felizes. Eram jovens e tinham uma casa grande no alto da colina. 
O touro Estrela levava Bentinho no dorso, davam voltas e voltas pelo pátio. 

Célia ainda chorava de saudades, todas as vezes que ouvia o berrante.  No coração a certeza, que o toque era só para lembrar, o quanto foi  amada.
 
 
 


 
 
Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 25/10/2008
Reeditado em 03/12/2008
Código do texto: T1247195
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2008. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.