Clara observava a sala ampla e bem decorada. Quadros originais e um belo piano ocupavam lugar de destaque. Lembranças trazidas das inúmeras viagens, coleção de miniaturas em porcelana e muitos porta-retratos espalhados. Em cada canto um pedaço da história. Sufocante ambiente frio e triste.
Na mesa de jantar vidros de calmantes e um copo de Bourbon. A vida não havia sido justa e não conseguia aceitar as diferenças entre a sua existência miserável e a felicidade da irmã.  Se aquilo era destino, algum erro havia acontecido na hora do nascimento e tudo de ruim depositado em sua conta. Algumas pessoas nascem com a estrela mais brilhante e outras são ofuscadas.
     Enquanto a irmã estava no segundo casamento, excelente matrimônio, diga-se de passagem, Clara amargava o abandono da pior forma possível. A velha história de sair para dar uma volta e desaparecer aconteceu um ano após a união com o único namorado. Clara refugiou-se na casa da mãe, sentia-se humilhada e inútil. 
Queria tanto ter filhos e uma grave infecção extirpou de vez qualquer possibilidade. Enquanto chorava o útero perdido a irmã anunciava a segunda gravidez aos quarenta  anos. Não conseguia esconder a inveja que sentia, implicava com Alice pelos motivos mais corriqueiros.Com o tempo falavam-se muito pouco.
     Véspera de Natal é uma data complicada, a mãe estava com a irmã preparando a ceia para a grande festa. Clara recusava-se a partilhar a alegria que não tinha. Alice acusava a irmã de fazer chantagem emocional e ser a eterna coitadinha.
 Não conseguia decidir se engolia as pílulas e encarava a morte ou juntava algum resquício de esperança adormecida. O telefone tocou várias vezes, insistente e incômodo. Na décima vez Clara atendeu:- Não vou e não adianta insistir-Silêncio
-Clara? –Voz de homem, pensou que fosse a irmã insistindo na comemoração.
-Quem é?- Ouviu a respiração profunda- Não tenho tempo para trotes.
-É o Marcelo, podemos conversar? - O ex-marido estava vivo.
-Não acredito, o passado retornou e ouço vozes do além. Você tem noção de quanto tempo esperei esta ligação?
-Pior que tenho.
-Problema seu, espero que morra e vá pedir perdão à Deus.
-Mas eu estou morrendo, por isto decidi falar com você. Estou doente Clara, só peço alguns minutos e depois faça o que achar melhor.
-Marcelo, todos sabem que você  estava viajando pelo mundo e curtindo a vida. Feliz e saudável.
-Não é verdade,  depois que soube que só tinha poucos meses de vida, resolvi realizar alguns sonhos. Viajei ao Nepal, Índia e outros lugares.
Clara nunca sentiu tanta raiva de Marcelo quanto naquele instante, a  desculpa da doença era desconcertante:- Devo ser uma péssima companhia para não partilhar seus últimos momentos.
-Sabe que eu senti muita falta deste seu jeito debochado? Eu errei e fui egoísta, pensei que seria muito mais divertido viajar solteiro e livre para fazer o que bem entendesse.
-Espero que tenha aproveitado bastante, sofri meses a fio imaginando o que eu havia feito para ser abandonada daquela forma.
-Sei que o que fiz é imperdoável. Eu tenho câncer, superei os prognósticos e venci fases muito difíceis.
-Sinto muito Marcelo, é tudo que posso dizer no momento.
 -Clara,  fiz muito mal em sair daquele jeito, fui covarde e estou muito arrependido. Só queria que você soubesse. Hoje acordei pensando muito em você, para ser sincero, não consegui sossegar ate falar com você.
- Está bem, eu nem sei o que dizer.  
     Clara sabia que aquela ligação ia de encontro com suas idéias suicidas. O ex marido havia se dado uma chance de ser feliz, a irmã não tinha culpa de ser feliz e ela nunca havia nem tentado. 
 
- A viagem-
 
     Clara amanheceu mais calma, havia pensado muito e decidiu sair do círculo vicioso. Afastar-se da irmã e da mãe pareceu a melhor solução. Precisava de um tempo para refletir e mudar o que não estava de acordo. Imaginou-se apreciando novos ares em um ano prestes a iniciar.
     Pensou em uma viagem e a idéia soou tentadora. Visitar museus, assistir algum show interessante ou simplesmente passear.  Jogou algumas roupas na bolsa de viagens, a conversa com o ex marido ainda ressoando em sua cabeça. Em poucos minutos estava à caminho do  aeroporto Internacional.
Ligou para a irmã:- Oi Alice, estou indo viajar. Sozinha. Não sei quanto tempo vou ficar fora e nem sei para onde vou. Ainda não decidi. Maluca? Acho que sim, avise a mamãe que peguei o meu dinheiro no cofre. Alice, preciso desligar. Feliz Natal!
O balcão da companhia aérea estava quase vazio. Clara sorriu para a funcionária:- Boa tarde, uma passagem para Paris, por favor.
-Sinto muito senhora, o vôo para Paris está lotado. Podemos tentar uma conexão mas só temos lugar no Milão. Esta época do ano é muito complicada.
-Pode reservar,  alguns dias na Itália e sigo de trem para Paris.
-Nossa, a senhora tem muitas milhagens. Quer trocar para a classe executiva? Posso despachar a bagagem?
-Só tenho esta bolsa de mão e pode confirmar a executiva.
Haviam muitas malas deixadas para trás, cheias de mágoas, culpas e ressentimentos. Clara queria distância deste excesso de peso. O avião decolou,  olhos perdidos nas luzes da cidade cada vez mais distante, misto de alívio e bem-estar.
      Ajustou o fone de ouvido e uma canção encheu o coração. Tim  Maia, a voz grave cantava ‘’Azul da cor do mar’’. A trilha musical da sua vida! Achar a razão para viver...motivos para sonhar....um sonho todo azul...Azul da cor do mar... mar de Capri, Sardenha, Algarve e muitos outros.
Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 26/09/2008
Reeditado em 04/12/2008
Código do texto: T1198068
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