Hoje acordei moleque, de boné virado e manga arregaçada. Descalço, caminhei na grama, bani de vez os compromissos.
 
Troquei o relógio por um pacote de gibis e comi biscoito recheado de chocolate. Brinquei com meu cachorro, rolamos na lama, encharcados... 
A chuva gelada lavou minha alma, e senti a vida correndo nas veias. 

Mais uma vez, o menino soprou meus segredos mais felizes. Esquecidos. Carrinho de rolimã ladeira abaixo, gritaria nas calçadas, sacolé de ki-suco. Sonhos felizes para espantar o mal para bem longe....o Bicho Papão. 

Vi o pequeno saindo de mansinho, atravessando o portão, cabisbaixo:- Obrigado amiguinho, mais uma vez... 
Ele acenou, parou,  e então vi que segurava a mão de Belinha. 
Sorriram, sopraram beijos e seguiram pulando poças d’água na calçada. 
Fazia muito frio, o nevoeiro descia a serra, tomando o vale. 
Parado no jardim, molhado de orvalho, a despeito de tudo, estava em paz. 


Quando entrei em casa, reparei que quase tudo havia sido feito com carinho, na oficina do sótão. Esculpindo a madeira, transformando o bruto em móveis, corrimão, casinha de bonecas, armários de cozinha e brinquedos.
A estante da sala, repleta de livros levou quase dois anos para ficar pronta. Enchemos as prateleiras juntos. Belinha alternou as cores das capas, preocupada com o colorido final.
 
Na bancada de madeira bruta, escondido sob pilhas de projetos, os comprimidos onde esperava encontrar alívio.
O restos das cinzas da lareira apagaram os vestígios da fraqueza momentânea . 
Pela primeira vez chorei a ausência da minha menininha. No pranto, libertei a raiva, que transformou a escuridão em minha única companheira. 

Hoje acordei moleque, sonhei que disputava com minha filha, brincadeiras de crianças.
Balançando bem alto no pneu pendurado no galho da mangueira, fazíamos de conta que viajávamos para o espaço...Marte, Vênus, Saturno, Plutão...

Sinto falta da minha Belinha, estrelinha, lua, fada e borboleta. 
Sei que o vazio sempre existirá.
Desta vez, a saudade veio com o gosto doce, da fé renovada. E a ausência do desespero, trouxe a calmaria e mansidão.
 

Giselle Sato
Enviado por Giselle Sato em 23/08/2008
Reeditado em 03/12/2008
Código do texto: T1141993
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