Funebrial

Cordelino de Freitas levantou a cabeça, do canto de trás de toda aquela multidão, e disse: “Bento morreu de desgosto da vida”. E a multidão, que se aglutinava em torno do corpo ainda quente de Bento, concentrando aspirações quentes e fazendo a sala de Dona Nazinha parecer menor que já era. Uma caixa de fósforos. Mas, quando Cordelino de Freitas terminou seu desabafo, a multidão se calou, e viraram-se, todos, à Dona Nazinha, num reflexo típico de fofoca que o interior costuma ter. Ora, todos sabiam que Nenê não era legítima de Bento, inclusive ele. Mas Bento era um bobão apaixonado, e isso todos sabiam também, então fingiu-se o dito pelo não-dito, e o povo logo esquece e arruma outro assunto pra falar. E nenê era a bem educada da cidade, cresceu feito princesa entre os brinquedos importados que o irmão de Bento trazia pra ela da cidade, perto do fim do ano como costumava fazer. Dona Nazinha, que de boba não tinha nada – e nem de reliosa, tratou de inventar um batismo na capela da cidade pra firmar o vínculo de comadre com o Joel, o cunhado. Ele tinha um comércio na cidade, era o que o povo falava, e todo ano vinha visitar dentro daquele carrão que parecia o caminhão que, de vez em quando, parava ali. A madrinha era Zélia, uma figura ímpar que se auto-denominava Mãe-Zélia, e de mãe não tinha nada. Mas gostava de ser chamada assim. E foi uma festa, Joel trouxe salgados e cervejas que não tinha povo pra tanta fartura. Foi de manhã, e a da cidade não tinha uma única cabeça que não tivesse na capela, a maioria com uma pecinha de roupa branca. Depois foram pro areal de Mãe Zélia, o único que cabia todo mundo. E foi assim, um dia inteiro de comilanças e bebedeiras sem fim. Dona Nazinha, que era mais velha que Bento e não deixava o pobre o homem em paz, tratou de inventar dor nos pés e o levou pra casa, muito antes da festa terminar. Quando Nenê fez dez anos, quis de presente uma viagem pra cidade, na casa do padrinho. E os pais tinham que ir também. Ora, logo Bento, enraizado que só ele naquela terra, na cidade? E foi, a muito mando de Dona Nezinha, que já tava de sacolas prontas pra ir. E foi assim, com tanto deslumbre, que Joel levou Nenê aos quinze anos, pra passar o mês de férias na cidade. Mas Nenê era moça feita já, e parecia aquelas meninas de televisão. Usava umas coisas bonitas e sabia ler. Dona Nezinha passou o mês num pé n’outro, atormentando o podre do marido pra cima e pra baixo, em todo o canto que o homem resolvia ir. E o mês passou, passaram dois. E nada de Joel trazer Nenê. O clima na casa de bento já era pesado, e o povo já evitava de dar uma chegada lá. Então, numa sexta feira, lá vem o ronco do ônibus do tio, e a família toda já foi pra frente da casa. Dona Nazinha foi gritando: “Cadê essa menina?”. E saiu do carro, Joel de cara feia, e Nenê, de cabeça baixa e som nenhum, passou voando pelos pais e entrou dentro de casa. “Ahh menina! Ta aprontando né!”, Bento gritava olhando pro irmão. E, no dia seguinte, a cidade inteira tava sabendo que Nenê estava prenha, de um galego da cidade que nunca tinha visto mais gordo. Bento era o retrato do desgosto, e ficou sem sair de casa por quatro dias inteiros. No primeiro dia que ele resolveu sair, Nenê saiu logo atrás, com uma muda de roupas e sumiu. Uns meses depois Bento soube, pelo irmão, que Nenê tava na cidade, trabalhando de manicure e morando com o tal galego, e tinha mandado avisar que não ia voltar mais não. E Bento, coitado, mais uma vez fingiu que a filha tinha ido pra cidade pra estudar, e todo mundo fingia que acreditava também. Nenê voltou, uns 3 anos depois, num carro velho e com uma curiquinha preta dos olhos claros. Estava diferente, mais gorda, cheia de bugiganga pendurada, como o povo da cidade gosta de andar. E o galego veio junto. Bento, coitado, ficou todo acorujado com a neta que corria sem parar. Voltou umas três vezes depois, trazia uns presentes e a galeguinha cada vez maior. Dona Nezinha, que mal se agüentava em pé de tão magricela que tava, botou ainda mais uns chifres no pobre do Bento. E assim ele vivia, fingindo que não com ele, quando a vida resolvia perturbar. Até que morreu, capinando o quintal. Bento morreu de desgosto. Era o que o povo costumava dizer.

(Utilizo o espaço, em proveito, para agradecer ao carinho receptivo que recebo aqui. A todos, de coraçao, obrigada!

Ie
Enviado por Ie em 21/05/2008
Código do texto: T999704