O CARA
INTRODUÇÃO
Os hormônios faziam meus músculos tremerem de excitação. Na minha mente só um pensamento: Minha deusa de ébano.
...
O “CARA”
Não existia lugar melhor que este aqui na fazenda. Um banco que meu avô colocou aos pés de uma barrigudeira, onde ele gostava de ficar, relembrando de quando plantou cada muda do pomar com minha avó. Sinto falta dele e ele sentia muito a falta dela. A gente sempre trocava idéias, altos papos, sentados nesse banco.
Agora a barrigudeira desfolhava e eu lamentava a perda da minha sombra. Da sua companhia então nem se fala. Eram tão bons os seus conselhos.
Ao mesmo tempo ela, sempre ela, na minha mente, na lembrança do calor do seu corpo na meiguice do seu olhar e de seu sorriso inebriante. Meu Deus me ajuda! Estou loucamente apaixonado.
Por que ela tinha que ser assim, tão apaixonante e eu estar preso nesses grilhões da dúvida, nesse amor impossível ? Sinto-me pequeno, medíocre, uma luz é só o que quero.
De repente olho para minha direita e vejo um cara andando em minha direção. Pensei: “ Como entrou sem avisar”? Tinha nos cabelos enormes trancinhas e um monte de contas (“drads”). Vestia uma pantalona preta invocada, tênis, óculos escuros e fazia sons engraçados, soprando entre os dedos pela mão semi-fechada ou batendo no peito, nas pernas, dando uma parada e rodopiando sobre um pé. Assobiava, cantava, dançava e voltava a se bater no melhor estilo hap. Um barato a figura. Ele sozinho se embalava para dançar. Um grupo de músicos com vários instrumentos, não daria conta daquele show sem muitas horas de ensaio. Abri a guarda por alguns segundos. Ele tinha me deixado alerta. A figura me parecia sinistra. Agora já me via até sorrindo com aquele espetáculo.
— E aí, meu chapa!
Com um sorriso sincero estatela-se no banco ao meu lado abrindo os braços e pernas. Um folgado. Na hora a única coisa que me ocorreu foi a reação do meu cão, um fila brasileiro que atacava qualquer um que se movimentasse de forma suspeita em minha direção ou perto de mim. Alertei-o.
— Cuidado com meu cão, ele morde.
— Qual? Este aqui?
Olhando pra mim, diz:
— Olha só o que ele quer.
Ele estava rosnando e olhando fixo para ele.
— Não se mexa, ele vai te morder.
— Que nada! Não se preocupe. Vem cá, Rex!
O Rex dá uma mexida e cisca, com uma pata após a outra, jogando terra, pedras e muita poeira para trás, deixando-me apavorado, pois temia não poder controlá-lo a tempo. Vivia livre pelos campos, seguia-me por onde eu fosse. Não era sempre que me obedecia, mas adorava vê-lo solto.
Alertei-o:
— Estou avisando, ele costuma não me obedecer.
Mas não adiantou nada. Bateu as mãos no banco, como que para pegar impulso, olha para mim e se levanta de sopetão. Pensei: “agora o Rex vai dar o bote para cravar os dentes nele”.
Ele pega um galho que estava próximo ao mesmo tempo que um frio desceu pela minha espinha. O Rex acompanhou os seus movimentos com a cabeça. Fiquei incrédulo. Agredir ou se defender do Rex com um galhinho é, no mínimo, hilário. Ele olha para mim, para o Rex e grita:
— Vai buscar.
— Está louco?
Para minha surpresa arremessou para longe o galho e se estatela ao meu lado de novo, enquanto o Rex sai em disparada atrás do galho, latindo e balançando o rabo a toda velocidade. Quando volta com ele na boca, pula no banco e põe o galho em sua mão,
deitando-se ao seu lado e colocando a cabeça sobre sua perna.
Afagando-o, diz:
— Quanto tempo, hem Rex?
Eu já tinha ouvido falar de pessoas assim que se interagiam com os animais. Mas com o Rex fiquei estarrecido, surpreso e até mesmo com um certo ciúme. Lá no fundo, eu pensava: “o Rex bem que podia ficar na dele, pelo menos sem se esbaldar tanto?”
— Isso garoto, daqui a pouco a gente brinca mais.
Olhei sério, meio enciumado ou sei lá o quê, e ele me pergunta:
— Você me pareceu meio triste, o que o incomoda?
Nunca tinha visto aquele cara antes, talvez por seu astral e até mesmo por ter o Rex sobre o seu colo me olhando, relaxei .
— As diferenças.
— Incomodam? Ou os outros é que se incomodam e acabam influenciando-o?
— Sinceramente acho que elas também me incomodam.
— Coloque as pernas assim de modo que possa bater nelas.
— Desse jeito?
— Isso, assim mesmo. Agora me acompanhe... vamos, se anime! Dê tapas acelerados, com ritmo. Isso! Grande garoto!
E começamos a fazer sons.
— Agora bata no peito. Isso, isso, vai fundo!
— Tente na boca, na bochecha, nas pernas, procure ritmo, assobie, cante!
— Eu não conheço nenhuma letra.
— Eu também não, invente um motivo, vamos nessa, isso, arrebenta, pense nela, na sua deusa de ébano, vai fundo...legal, que maravilha! Grande garoto, isso é que é vida!
— E esse seu giro?
— Bote um pé atrás do outro joelho, dê uma inclinadinha e gire. Cadê o charme? Boa, garotão! Assim...isso...continue, que legal! Você tem música no sangue e amor no coração. Vamos, não perca o ritmo, que barato!
Por incrível que pareça lá estava eu rodopiando e cantando junto com aquele maluco. Fizemos isso até cairmos sobre o banco de tanto rir.
De repente me vi estatelado igual a ele, pernas esticadas, braços abertos e rindo do inusitado. O cavalo preferido de meu avô se aproxima e fica abaixado próximo a nós. Olhando para o pomar e ele me diz:
— Eu gosto de abacate.
— Grande demais, o gosto não chega nem perto de uma goiaba.
— Mas tem sombra!
— Sombra boa para levar um cesto de goiabas madurinhas e se deleitar.
Um monte de galinhas se aninham, com seus pintinhos, ao nosso redor.
— Misturar é ótimo, a sombra de um com o sabor de outro.
Mal acabou de falar, vieram os porcos, as cabras que se acomodaram junto com os outros animais, em silêncio como se eles não quisessem incomodar.
— Eu te conheço de onde? Está me parecendo que está tentando me dar um recado.
— Nós amamos demais quando nos entregamos sem regras e preconceitos a esse amor. E trilhamos destemidos o caminho da felicidade que se abre aos amantes.
— Não entendi.
— Você mesmo é que me disse que o bom é comer goiaba na sombra de um abacateiro.
— Eu gosto de goiaba.
— Pois não se torture mais por gostar de qualquer coisa ou de alguém. Mergulhe de cabeça nessa relação sincera e com o tempo irão entender o motivo da sua felicidade.
E pára de falar.
— Agora me deu vontade de comer goiaba. Não! Goiabas.
— Na sombra?
— Isto! Na sombra do abacateiro.
E levanta a mão para que eu bata nela com um sorriso maravilhoso. Aquela espalmada ficou inesquecível.
— Vou pegar para você.
— Para a gente!
Enquanto eu subia ia vendo que todos os bichos iam partindo passando por ele. Quando eu cheguei lá em cima, ele me diz:
— Tenho que ir embora, está muito tarde. Vou atender um outro chamado.
Chamado! - pensei.
— Essas goiabas ficam para a próxima. E você já tem companhia.
E sorrindo:
— Ela, somente ela, adeus!
E foi andando. Fiquei lá em cima, agarrado aos galhos, intrigado. E antes que ele sumisse lhe perguntei:
— Você me conhece de onde?
E antes que desaparecesse entre as árvores:
— Há muito tempo, desde antes você nascer.
— E o Rex?
— Era meu companheiro, cuida dele para mim.
— Então ele é nosso!
E só ouvi o som de sua voz cantando até sumir na mata.
Quando menos esperava, ela, sempre ela, estava ali me estendendo um cesto para que eu pudesse colocar as goiabas com aquele sorriso inebriante. Sempre ela, só ela, a minha deusa de ébano.
...
E hoje, graças àquele “Cara” maluco, estou com minha companheira, a mulher que amo, filhos e netos e muita, não, muitíssima felicidade e tudo por causa de umas goiabas.
DiMiTRi
10/2/2007 23:11