Enterros

Pra quem ainda não crê na história do ouro deixado por Solano Lopez pos estes lados fronteiriços, vou relatar duas situações: inusitadas é verdade, mas realistas, verdadeiras, tanto é que os personagens estão por aí, vivinhos da silva pra confirmar como quase conseguiram enricar. A primeira se deu com o Karaí Reducindo Lima, conhecido por todos como Sêo Redú, morador ali das bandas do Ytapoty, localidade aliás onde seus ancestrais paternos se instalaram, depois de longa viagem feita em carretas desde o Rio Grande do Sul e vieram a se apaixonar pela fartura de terras que muito lembrava o rincão amado e por umas paraguaias que já gravitavam por aqui, estas tinham vindo ajudar no mundo da erva. De tanto ouvir as histórias sobre o enterro, Sêo Redú passou a crer nelas e muito mais, devido a fervorosa devoção que sempre teve pela vingencita de Caacupê, sua protetora e de todos os irmãos paraguaios, achava até que era merecedor de encontrar um tesouro e dar melhor condição de vida e estudos aos seus. Pois justo. Numa época de dezembro, assim quase chegando os dias de comemorar o nascimento do Salvador, seu Redú e um seu irmão de nome Satírio receberam o sinal. Se apegaram com os santos protetores e foram rezando: Dio te salve Maria lhena de gracias...dizia um e o outro respondia: Santa Maria madre de Diós...Maldade no coração não havia, irmãos de sangue e de coragem que eram não lhes passava pela cabeça dar o calote no outro, o que era de um seria também do irmão. E acharam o bendito. Cavocaram a noite inteirinha, quando um sentia o cansaço outro pegava na pá, até que deram com a arca cheinha de guaranis de ouro. Não tinha mais jeito o enterro era deles e ninguém tascava. Agora - pensava o Redú - ia poder realizar alguns desejos há muito ‘desejados’ e impossibilitados pela dureza da lida no campo e a pocura de la plata, por exemplo, fazer uma viagem até a cidade de Caacupê para agradecer por todas as graças recebidas, principalmente a cura do caçulinha que nasceu de sete meses, quem sabe levar a dona até o lago azul de Ipacaraí tão afamado e imaginado, toda vez que o compadre Salustiano entoava a famosa canção. Ia ver os filhos ‘dotor’ ah se ia. Tava até imaginando o Laudir vestidinho de branco, que nem aqueles anjos que aparecem nas folhinhas do comércio do seu Juquinha Machado, com óculos redondo nas orelhas, pra ficar mais parecendo com médico mesmo e atendendo aquele povo do sertão. Doutor. Laudir, iam dizer, filho do Reducindo Lima, sim senhor. Os outros todos quem sabe, professora, dentista, advogado. Ele Redú, mal sabendo garranchar o nome, os filhos todos formados. Orgulho maior não havia de ter. Já Satírio, solteirão por opção e convicção tinha sonhos mais modestos, queria sim, conhecer a pátria dos seus antepassados, também pensava em dar uma passadinha na terra da sua santa, mas isso ficava pra depois, agora o que queria mesmo é se esbaldar numa casa de raparigas que tinha ali pros lados da entrada da aldeia, num lugar que chamavam de “chacrinha”, ficara até sabendo, que faz poucos dias, chegaram por lá umas correntinas que eram espetaculares, dizia-se delas que faziam coisas inimagináveis para os padrões da brasiguaiada que viviam por esses recantos, de mais a mais ia investir numa boa moradia pra receber os amigos e tomar o seu tereré, comer chicharón à vontade. Mas como se diz, sorte é pra quem tem, não é pra quem quer. O infeliz do Redú desobedeceu a regra mais básica de quem é agraciado com os sinais do enterro. Amaldiçoou. Mas conto, até que não foi por querer, coitado. É que tinham trabalhado, a noite inteira, o sol já tava lampinando, a fome era brazina. A sede deixava a guela seca. Foi quando viu uma cachopa de abelha, num tronco de canjarana. Mel de orópa. Pegou aquele favo, com mel e tudo e enfiou na boca, nem desconfiava; dentro do favo, decerto uma abelha dorminhoca que não tinha ido embora com o enxame, sentindo-se acuada desferiu ferrão na língua, na gengiva, no céu na boca do quase milionário. - Hijo de la grán puta. Desgrácia. Anharacopeguarê. - Pronto. Maldizeu, xingou, falou palavrão, não podia, os espíritos do enterro não perdoam. A arca simplesmente desapareceu. Redú e Satírio, nem se deram ao trabalho de procurar muito, sabiam, sempre souberam do mandamento. Foram embora desolados, o Redú mais ainda, a culpa tinha sido dele, pedia a compreensão e o perdão do irmão, não falou aquilo por querer. Este compreendia, perdoava, dizia que se não foi, não era pra ser e o que tiver que ser será. Tava triste por causa do dinheiro não. Seu pensamento estava mesmo era nas baianas. Desconsolo medonho, porque agora nunca ia poder saber o que é que a baiana tinha. Ainda estão lá, pras bandas do Itapoty, os dois, não deixam de noite por noite, vigiar o horizonte a procura de um novo sinal. E se vir, nem pensam em ‘olhar’ para o mel de Orópa. Arrenego. Outro desses causos, se deu com o Valeriano, por acaso, também da família dos Lima cuêra. Diz ele que muito moço, foi chamado daqui das terras de nhu-verá, para as terras de Paranhos, por um irmão mais velho de seu pai, que queria muito lhe falar. Lá chegando, depois de uma viagem cheia de dificuldades, em que num lombo de burro, levou cinco dias, seu tio lhe explicou que num sonho tivera o aviso de um enterro, numa localidade ali próxima mesmo, mas que neste sonho estavam, ele Valeriano e um filho deste tio, portanto, seu primo, e que o tio achava que na verdade, estes dois é que deviam cavar o enterro, porque já estava velhote, já tinha vivido a vida bem vivida, queria mesmo terminar bem a velhice pra poder se encontrar com o criador, que não tinha mais ambição de enricar, que esta só traz dissabores, tornando a gente avarento, e podia ainda lhe atrapalhar no acerto de contas final e tudo que não queria era ir pros domínios do anjo do mal, passar o resto da eternidade em larva de vulcão fervendo. Pra encurtar a conversa, Valeriano e Santiago, este o nome do primo, foram orientados direitinho sobre o lugar onde deveriam cavar e encontrar o tesouro. Pois bem, seguiram o caminho, cavocaram, decerto quando já tavam nuns três, quatro metros de fundura, até já sentiam o cheiro de água, quando deram com um enorme tronco de ipê, justamente atravessado de cumprido bem onde estava a localização da arca. Sem opção, meteram o machado neste tronco, e quando mais lanhavam, mais parecia que a madeira tinha fundura. Nisso, de cavar, já tinham se passado uns trinta dias, pois o serviço era feito só pelos dois e tinha que ser à noite, pra não despertar a atenção e a cobiça dos passantes e vizinhos. Uma semana se passou. Valeriano esmoreceu. Falou pro tio que tava enjoado daquele serviço, que aquilo era sonho de doido, que não tinha enterro coisa nenhuma e que tava mesmo é com saudades da ‘guecha’ que tinha deixado em Amambai e ia voltar embora. Sem opção, o tio mandou matar umas duas galinhas, fez uma viração com farofa e charque, pra servir de matula e despachou o sobrinho de volta pra sua terra e pros braços da amada. Muito tempo depois Valeriano soube. Justinho naquele lugar onde quase morreram cavocando, um vizinho de seu tio, quando ia tomar banho na bica, resolveu encurtar o caminho e passar por dentro da mataria, na ponta de um tronco de ipê deitado, bem fino, estava uma arca, cheinha de dobrões de ouro. A explicação é que ele e Santiago cavaram do lado errado da tóra, posto que a madeira tinha sido colocada ali pra demarcar o lugar, mas o ouro estava enterrado embaixo da ponta da madeira e não no começo. Consola-se apenas com o fato de que seu tio, pela santa pessoa que sempre foi a essa hora deve estar se rindo ao lado de São Pedro.