Selenita
* Os americanos não foram à Lua. Ainda acredito que tem gente por lá.
I
O moleque barrigudo foi abrindo o mato com sua pequena foice porque sabia que alguém estava por ali. Cerca de dez metros depois ele encontrou o menino, nu, de joelhos arranhados, cabelo completamente arrepiado e com as mãos tentando esconder parte de uma cômica expressão de pavor.
- Donde ocê veio? - indagou o moleque.
- Da lua - disse o menino.
Então o moleque ficou feliz e levou o ET para sua casa de taipa. Lá o alimentou, o banhou, o vestiu e se tornou o seu melhor amigo de sempre, com quem agora partilharia seus medos, seus segredos e suas fantasias. E o menino da Lua, apesar de viver reclamando do calor e do oxigênio abundantes, estava adorando a vida na terra e nem cogitava a possibilidade de uma partida.
Certo dia, quando espiavam as meninas do Sítio das Oiticicas tomando banho no riacho, o ET teve a estranha sensação de que lhe faltava alguma coisa, então olhou para o moleque barrigudo e disse:
- Bota a mão no meu peito.
O moleque botou a mão e percebeu que o coração do menino batia apressado que nem pandeiro de malandro. Então coçou a sobrancelha, riu com o canto da boca e respondeu orgulhoso:
- Isso é falta de muié...
- E isso é ruim? - assustou-se o menino da Lua.
- É sim, mas nós resolve isso é hoje a noite mesmo!
Na noite desse dia, logo depois da missa, o moleque barrigudo levou o ET até a Carminha, filha do Raimundo. O menino, tipicamente envergonhado, olhou a menina bem nos olhos e logo sentiu o mesmo troço esquisito de antes.
- Carminha, ele quer te conhecer. - disse o moleque, empurrando o menino para cima dela.
A linda Carminha sorriu toda encabulada, porque ela achava que naquela noite daria o seu primeiro beijo. E o pior é que deu. E não preciso dizer em quem.
II
Mais tarde, coisa de três ou cinco anos depois, a Carminha e o ET, de tão felizes, não paravam de falar em se casar. O menino barrigudo, por sua vez, continuava mulherengo que só ele, porém solteiro. E a amizade dos dois jovens parecia crescer cada dia mais e mais. E foi aí que teve um dia, quando a barragem da cidade ficou cheia, que eles três foram juntos dar um mergulho por lá.
Ao chegar, ficaram maravilhados com aquele mundão de água de açude, e sem nem combinar, correram para a margem para pular de cima de uma pedra engraçada que viram por lá.
Nesse dia se divertiram como nunca tinha se visto antes. O amor era uma coisa tão simples que ninguém estava ligando se era certo ou não, se era bonito ou não, ou se os outros estavam olhando... Estavam apenas se amando e isso bastava. Ao final da tarde, quando o Sol já batia de frente, Carminha correu para cima da pedra, para dar seu último mergulho.
- Vou dar um mortal! - disse ela, sorrindo.
- Agente te espera aqui. - respondeu o menino.
O vento soprou frio. Ela pulou. Na mesma hora um estranho calafrio percorreu a espinha do moleque barrigudo, que logo correu e se atirou junto, prevendo algo de ruim. A água pulou e o ET ficou apenas olhando, sem entender o que acontecia. Um tempinho depois o moleque voltou, pálido e sem ar:
- A Carminha... sumiu.
III
O crepúsculo confundia os seus olhos negros, submersos n’água, fazendo parecer que as sombras eram galhos para se agarrar, o que tornaria possível retornar à superfície. Assim, Carminha lutava contra a correnteza da turbina do véu-de-noiva que a puxava para baixo.
Entretanto, os galhos eram apenas sombras, e ela não conseguia subir sob nenhum esforço. Por mais que seus pés batessem, ou que suas mãos abanassem, cada tentativa parecia empurrá-la mais ainda para o fundo. Então, sem sentir dor alguma, e com as mãos atadas diante da fria tez da morte, Carminha foi se entregando aos poucos, parando de se mexer, de respirar... de viver...
Pouco antes da escuridão chegar por completo, ainda pensou ter visto um anjo voando em círculos, logo acima da sua cabeça.
IV
À noite, quando o corpo foi resgatado, o ET se aproximou sem entender porque tanta gente chorava e se lamentava. Ele a viu deitada na pedra, com os olhos cerrados, sem vida, e as mãos imóveis sobre o peito sem ar. Não conseguiu compreender porque ela não mais se mexia. Até então, o pobre menino da Lua ainda não havia visto a morte tão de perto, e aquele se tornou um enigma que ele prometeu a si mesmo desvendar, mesmo que para isso tivesse de gastar toda a eternidade.
Na noite seguinte o ET arrumou sua mala e voltou ao exato lugar onde fora encontrado anos antes pelo seu amigo. Então, na calada da noite, ele assobiou bem alto, e pegou o primeiro disco voador que ia passando por ali. De manhã, o moleque barrigudo encontrou um bilhete em cima da mesa, e quando o leu, sentiu um nó na garganta:
“Eu volto assim que puder.
Espera por mim, meu amigo.
Adeus!”
V
55 anos se passaram e o velhinho barrigudo que conta essa história já não tem a memória tão clara. Ele vive sentado numa cadeira de balanço, no alpendre de sua casinha branca, onde apenas espera a hora de morrer, fumando o seu cachimbo pacientemente.
Todos os dias, quando chega a hora de dormir, ele se levanta da cadeira, caminha devagarzinho até a sua cama, ajoelha-se de mãos juntas e de olhos fechados e faz uma pequena prece:
- Deus, permita que eu veja o meu amigo uma última vez, antes de morrer...
Uma noite dessas, quando o velho vagava pela casa sozinho, a procura de si mesmo, uma luz verde que piscava começou a entrar pelas frestas de sua janela. O velho, assustado, pegou sua espingarda, saiu de casa e, quando apontou o cano da arma para a fonte da luz, viu o imenso disco voador estacionado no seu quintal. Na sua porta, o menino da Lua o encarava, exatamente igual à última vez que os dois haviam se visto. Ele não parecia nem um mês mais velho, mas seu rosto tinha algo de diferente. Seus olhos denunciavam anos e anos de vida e de aprendizado, e seu sorriso era de muita alegria, como se tivesse feito uma grande descoberta...
O velho andou até ele, tocou o seu rosto e disse:
- Ocê não mudou nada...
- Mas você está feio de doer - brincou o ET.
- Ocê veio pra me buscar? - e os olhos do velhinho brilharam.
- Sim. Vim buscar você e a Carminha.
- A Carminha?
- Sim! - o ET abriu um sorriso - depois de muitos anos procurando eu finalmente descobri a fórmula para fazê-la voltar a vida. Quer que eu te mostre?
Fim.