Eu quem fechei os olhos dela.
Se perguntassem o perfeito conceito da palavra LINDO, meu pai diria que lindo era tudo que fosse parecido com aquela manhã.
Isto fazia parte da história do dia de meu nascimento. Fora comovente segundo meus pais, pois fora uma gravidez de risco, uma vez que minha mãe sofria de hipertensão, e diabetes, e engravidou com trinta e três anos.
Contava meu pai, sempre em meu aniversário, pela manhã, comendo um gordo pedaço de torta sonho de valsa ou lambendo a base das velinhas do ‘parabéns’ repletas de glacê, que vivíamos com o médico em nossa porta... O destino tinha o péssimo hábito de fazer minha mãe passar mal diversas vezes, sem peridiocidade exata, ou sintomas rotineiros, tudo porque eu insistia em vir ao mundo.
Meus pais venderam a enorme casa de seis quartos e amplo jardim com begônias, e compraram uma menor. O mesmo aconteceu com potente e exclusivo carro de meu pai. Tudo porque tudo que ela precisava para ‘tentar’ manter a saúde estável durante a gestação era de alta bagatela, contudo não tinham escolha: eram os preciosos bens, o conforto supremo, ou eu. Certa vez, o primeiro médico que, contrataram, assim digamos, disse que era melhor abortar o bebê. O que fizeram? Além de o destratarem formidavelmente, o demitiram, assim digamos.
Minha mãe corria grande risco de vida horas antes do parto. Foi levada á sala de cirurgia quase que não para gerar uma outra vida, mas para não se entregar a morte. A tensão emanava de todos os corpos como transpiração. A equipe de médicos tinha como primordial foco, entre seu idioma particular, a máquina frágil, obtendo um ponto claro sobre o fundo escuro. Bailarino ele dançava de um lado a outro no aparelho, oscilava na tela ao lado do corpo indicando que ainda brilhava a aura daquele ser, que a criatura Divina continuava a soprar o maravilhoso dom... E assim ele permanecera quando eu já estava em seus braços chorando recém-nascida. Era poesia ver aquele minúsculo ponto sob a atenção de tantos olhos . Oficio inimaginável do mais potente artista, ter uma máquina orientando tantos homens... É assim mesmo: tudo começa de um ponto!
Bem, nasci. Meu pai faleceu quando ainda era criança, e não sei se é certo falar isso, mas penso ser a mais sofrida das pessoas na face da terra. Não ouço mais a história do meu nascimento em meu somar de primaveras, nem sopro velas cobertas de purpurina com base em glacê, nem como mais torta sonho de valsa, nem um pedaço sequer... Para não aguçar os desejos proibidos de minha mãe. Apesar de não consumir nada do que lhe é proibido, o simples oxigênio parece ser nocivo á minha amada.
Já não há mais pai em minha vida, por falar em vida, isso é uma coisa que realmente não tenho mais.
Ainda na adolescência saía a noite com poucos amigos para curtir as baladas dos anos 80. Estive em shows do RPM, Rita Lee, ganhei taras bem desejadas, eventos de estar cara a cara com ABBA, Cyndi Lauper, Roxette e tantos outros ídolos dos quais só a única coisa que me restou para saciar foi resmungar sem noção de ritmo as canções enquanto lhe dava banho ou o remédio.
Várias vezes que “curti as baladas”, quando voltei a encontrei no azulejo claro e gelado do banheiro, desmaiada e também gelada. Sabia que não era proposital, que ela não tinha a mínima culpa, porém no meu impulso adolescente de maquiagem borrada e minissaia, perguntava num efêmero sussurro: - Por que mãe? Por quê?
Seus olhos muito azuis atrás da cortina de lágrimas, seu rosto fundo e eternamente doentio me falava: - Não sei, mas desculpa filha, desculpa!
Depois de tempos, nem mais falar ela pôde. Um derrame paralisou todo seu corpo... E como eu queria ouvir suas inocentes desculpas.
A mulher que passeava comigo nas ruas fazendo bobagens e imitando os outros, que fazia coreografias das músicas do momento, que gritava em meu próprio bem, que imitava pessoas da televisão no meio da sala para não me ver tão triste... E o que mais gostávamos de fazer juntas, que nos trazia imensa paz e felicidade era desenhar. Não qualquer desenho, muito menos perfeito, mas com giz de cera inventávamos formas e usávamos cores diversas. No nosso planeta da mesa de jantar, com folhas sulfites e muito giz fazíamos disputas e parcerias em gravuras, rotinas e abstratos... Usávamos todas as cores, éramos criativas á valer. Sabia que as pessoas falavam de minha mãe, só falavam em sua tristeza nostalgia e dor, mas eu também sabia que não era só disso que ela era feita... Nós desenhávamos juntas, iguais, amando-se e isso era o melhor de nossas existências.
Mas aquela mulher que me ensinara tantas coisas essenciais não existia mais... Aqueles grandes olhos azuis que tanto me fizeram bem, eram inexpressivos. Aquelas mãos e colo que tanto me forneceram segurança, não se mexiam mais... Eu odiava dia das mães, qualquer data tachada de “familiar” era por mim repudiada, porque não tinha família de verdade.
Sim. Se a pergunta se tratasse de eu poder ou não pagar alguém para cuidar da minha inválida mãe, a resposta seria sim. Poderia, mas fazia questão de colocar as próprias mãos, pintar com meu próprio giz, pois tratava-se de gratidão. Porque nunca economizara sinônimos de “eu te amo”. E via as pessoas dizendo estas coisas e as abraçando. Mas minha mãe nenhuma reação teria, não me abraçaria ou responderia como o resto do mundo... Mas amor não é só vitrine, é na essência sentimento. Por tal sentimento calado que continuava a fazê-la desenhar: o giz em sua mão, variando as cores sempre, a prancheta, e a fazia desenhar coisas de nosso gosto, pegando firme em seu pulso... Ela parecia gostar e recordar momentos ímpares. Sempre que fazia isso, ela conseguia esboçar um leve sorriso, era seu único movimento instigado por toda uma cadeia de emoção.
Chegou o dia em que ela piorou. Achei nunca ser possível isso, mas o que eu sabia de certeza? No leito do mesmo hospital onde nasci, ao seu lado a mesma máquina de muitos anos atrás querendo dizer a mesma coisa por motivos bem diferentes.
Ali gastamos muito giz e muito papel, fizemos obras de arte incrível, até que eu cansasse, ou seu leve sorriso se desfizesse, mas isso não acontecia, e felizes virávamos a noite a registrar alegria em formas infantis na policromia de nossos cúmplices olhares.
Sabia que dali não haveria retorno... E nem mais me lembrava de como era sua voz, seu magnífico jeito de ser, o calor do seu abraço de mãe... Eram vultos as mínimas lembranças. Ficamos nos olhando e desenhando... Ainda escutava comentários das pessoas que só viam o que ela tinha de ruim. Foi quando o maldito ponto cessou sua dança, e apenas correu paralelo sem vontade: Tudo acaba num ponto... As enormes íris azuis fora de foco, então não esperei e fui eu quem fechei os olhos dela.
Se me perguntassem o perfeito conceito da palavra horrível, eu diria que horrível era tudo aquilo que fosse parecido com aquela manhã. Emoldurei todos os nossos desenhos, e não importa se alguns diziam que você era cinza como a tristeza, lilás como a nostalgia, ou verde bem claro como a dor... Eu conseguia ver suas cores verdadeiras, e eram todas muito lindas como um arco-íris.
Douglas Tedesco – 23/03/2008