O ROUBO DO JUDAS NA SEMANA SANTA

       Como eram interessantes as semanas santas antigamente. Em primeiro lugar é bom dizer que antes, a semana era uma semana mesmo, toda completa. Depois do domingo de ramos, começava de fato a semana santa, que ia até o domingo seguinte. Dia da ressurreição

       Muitos pessoas que passavam períodos distantes, a trabalho ou estudo, viajavam  com o fim de passar a semana santa em casa. Os estudantes tinham uma semana toda de férias. As comidas eram as mais variadas. Bolinhos de peixe, queijo, baião de dois, arroz doce e bacalhau Muitas pessoas jejuavam na semana santa. Na paróquia havia a via crucis e a celebração da missa do galo.

       Entretanto o ponto pitoresco da semana santa, era a fabricação dos Judas e o movimento que faziam em torno deles. Muitos fazendeiros guardavam seus Judas de forma sigilosa e sagrada. Era um ponto de honra mantê-los bem guardados, até o sábado, para levá-los para serem torturados, submetidos aos tiros e por fim, queimados.

       O fazendeiro Mário Santana era muito valente e respeitado. Ele sempre apregoava que Judas feito por ele, jamais seria roubado.
 
       Foi numa semana santa destas, que um personagem chamado Chico Deusdério, entrou num dos capítulos desta intrincada história. O seu patrão, Abel Belarmino , bolou uma estratégia interessante para roubar o Judas do seu arqui-inimigo, Mário Santana. Como Chico sempre topava qualquer parada, topou também esta.

       Chico Deusdério era pequeno e magrinho e se adaptou muito bem a esta perigosa missão. Ele foi preparado e enfeitado com todas as indumentárias de um Judas. Calça de brim azul escura e camisa estampada. Laço vermelho no pescoço e um bigode bem feito e colado. Sobre a camisa um paletó preto. Foi colocada uma cabaça em sua cabeça, onde havia os buracos dos olhos e da boca. Depois de pronto, ficou idêntico ao traidor de Jesus. O mais interessante de tudo, era a forma como ele se comportava. Ficava totalmente imóvel, como um material inanimado. Se escorregava, ele caia e virava um objeto tosco no chão totalmente teso e parado.

        Abel bolou todo o esquema e escolheu uma pessoa amiga de Mário Santana, Petronilo,  para esta missão tão perigosa. Ainda arquitetou todo o recado para ser transmitido.

       Por volta de meia noite, Petronilo montou seu cavalo pintadinho e saiu a galope, levando na lua da sela, aquele judas humano. Na viagem até a fazenda, Petronilo ainda recomendou baixinho:
- Chico, cuidado, não vá dar bobeira não, o homem lá é perigoso.
  
Ao se aproximar do alpendre da fazenda, Petronilo falou:

- Boa noite, Seu Mário.
- Quem é lá? Mário Santana tentava enxergar na bruma escura, fazendo refletor com as mãos, à altura dos olhos.
- Sou eu, Petronilo.
- Boa noite.
- Vim aqui trazendo uma encomenda pro "sinhô.  Seu amigo Chico Benevides, mandou um judas para o senhor guardar.
- Se aproxime, homem. Mas que invenção é essa? Perguntou Mário  Santana com a voz intrigada.
- É que lá na rua tá havendo muitos roubos e ele achou por bem mandar eu vir até aqui com o judas dele para o senhor guardar até o sábado. Porque ele falou que judas guardado aqui com o "sinhô", ninguém mexe não.
- Ora mais veja, "home". Mexe mesmo não.
- Sábado de manhã o senhor vai lá?
- Vou, Petronilo. Vou levar o meu judas e meu papo amarelo cheinho de bala para nós "fazer" a festa.
- Entre prá cá, me acompanhe.
 
Mário Santana caiu certinho e aceitou a proposta. O judas de Abel fora guardado no esconderijo mais secreto da fazenda, coladinho ao ao seu.
- Petronilo, pois "vosmicê" diga lá ao "cumpade" Chico que guardei o Judas dele aqui "pertim" do meu e ninguém vai bulir com ele não.

       Chico procurou ver pelos buraquinhos de sua cabeça, digo, cabaça,  todos os detalhes, localização, saída etc.
        
       Ao ficar sozinho, depois da saida de Petronilo, portador de tão perigosa façanha,  Seu Mário pegou sua lamparina e a aproximou daquele Judas recém chegado e foi olhando devagar. Começou dos pés e foi subindo a lamparina, enquanto o pavio de fumaça, tremia naquele quarto com cheiro de selas e arreios.  Ao aproximar a chama da boca, Chico prendeu a respiração. Parece que estava dando tudo certo. Seu Mário, balbuciou baixinho: - Mais Que Judas bem feito, dos "diachos"!

       Ao se retirar, Chico ainda esperou uns minutos, sobressaltado, com o coração pulando dentro de seu peito magro. Em seguida pegou o Judas de Seu Mário e foi saindo sorrateiramente, até ganhar a escuridão do pátio da fazenda. Depois embalou numa carreira desajeitada.  No trajeto, algumas pessoas correram atemorizadas, na escuridão da noite, com aquela sena inusitada de um judas carregando outro.

       O plano funcionou perfeitamente. E na madrugada seguinte, Seu Mário, em segredo, com a cara muito sisuda, quase roncando de raiva,  procurava o seu famoso Judas entre todos os presentes. Todavia, o senhor Abel fora mais esperto ainda, porque já o pendurara num poste e já havia, ainda com escuro, descarregado todo seu furor, no compasso de cada tiro que dava, com seu trinta e oito, naquele inditoso mamulengo. Para consumar seu ato insano, jogou gasolina e o queimou antes da chegada de seu arqui-inimigo.

       Chico Deusdério assistia a tudo e sentia no seu íntimo uma mistura de alívio e medo.

       O senhor Mário passou muitos anos especulando e nunca descobriu nada.

       Este foi o mais espetacular roubo de um Judas em semanas santas, naquela região.