AMANTES
O barulho característico do baque do remo na água orquestrava os outros sons da viagem: o coaxar dos sapos, o estrilado dos grilos e o vento que apesar de manso mexia com a folhagem da margem do igarapé. Dentro da pequena embarcação as duas pessoas permaneciam caladas, nem pareciam às mesmas que há algumas horas atrás sorriam confiantes, soltas na festa.
Começar uma conversa não era nada fácil, poderiam iniciar falando da vida que daquela noite em diante passariam juntos, não, naquela hora aquele assunto seria pesado demais, como planejar uma vida inteira, se nem mesmo a permissão de namoro tinham? Imploraram para poderem namorar em paz, mas não, os pais tinham que complicar tudo. O que eles tinham a ver com a disputa de terra? Nada, se pensassem bem até seria melhor que cassassem assim as famílias tornavam-se uma só e não haveria mais motivo para briga.
Os jovens calados e pensativos que viajavam sobre a luz incipiente de uma lua minguante era um casal de apaixonados, Pedro e Cátia. Nasceram ali, lado a lado, brincavam juntos, infância normal regada a muito banho de igarapé e rio; as grandes escaladas nas mangueiras, ingazeiros e jambeiros; aos jogos de bola, entre as mil outras formas de diversão para a molecada cabocla. A mudança veio com a morte de mestre Joaquim, dono daquele mundaréu de terra, o velho morrera sem herdeiros, seus bens móveis foram levados pela prefeitura, mais a casa e as terras foram largadas a lei do mais esperto. Os trabalhadores que já viviam no lugar cuidaram de demarcar seus espaços, contudo, essa divisão feita sem auxílio legal, ocasionou muitas brigas, uma das quais foi entre as famílias do jovem casal.
Seu Lima, pai de Cátia, reivindicava direito sobre boa parte da plantação de mandioca, alegava ter cuidado da mesma antes do dono morrer e com a morte do dito cujo não recebera pagamento. Seu Líbio, pai de Pedro, brigava pelo mesmo lugar, pois segundo ele, a famigerada plantação passava por trás de sua casa. O tempo passou o acordo não veio, a colheita estragou, e as famílias tornaram-se inimigas.
Pedro e Cátia naturalmente tomaram as dores de suas famílias e acabaram se afastando. Porém algum tempo passou, o sentimento de raiva começou a esfriar, já se cumprimentavam, mesmo que a principio, apenas com um movimento de cabeça. Depois vieram as conversas curtas que aos poucos se tornaram longas, a amizade renasceu forte. Os pais de ambos viam com preocupação aquele relacionamento, entre eles à raiva permanecia latente.
A amizade aos poucos ganhou novos rumos e o encontro mais amiúde, perceberam que se amavam. Os pais tanto de um quanto de outro proibiram a relação. Namoro proibido é melhor, continuaram se vendo. Todavia o pai de Cátia para resolver a situação, decidiu que mandaria a filha para casa da madrinha que morava na capital. Foi por causa dessa situação que os dois resolveram apelar para medidas drásticas.
Festa do padroeiro da localidade, muita gente, barulho, confusão, os apaixonados aproveitaram para fugir. Combinaram tudo, sairiam pela madrugada às escondidas e assim aconteceu. Agora estavam ali cheios de incertezas, apenas remavam, ficariam na casa de um amigo em outro rio.
Eram sete da manhã quando chegaram à casa do amigo, ele não se assustou ao vê-los, já os esperava. Depois do merecido café da manhã descansaram um pouco o corpo fatigado, em uma larga rede. Mal deitaram logo adormeceram.
Algumas horas depois já refeitos e totalmente conscientes do que fizeram, começaram a planejar os atos que teriam que tomar. Primeiramente precisavam ter um lugar certo e seguro, ali era algo provisório, as possibilidades eram poucas; voltar para casa impossível, pois se fizessem isso era separação certa; ir para cidadezinha próxima loucura, porque lá com certeza seriam encontrados. Depois de muito pensar, acharam uma solução que embora incerta, parecia mais viável, iriam para Belém, lá tinham conhecidos que poderiam auxiliá-los. Desde que principiaram a planejar a fuga começaram juntar dinheiro, Pedro vendeu seu barco, economizou os recursos do mês e ainda apanhou algumas cestas de açaí para vender; Cátia Vendeu todos seus serimbabos (pato, galinha, porco), alegando sempre que como iria para casa da madrinha não teria mais como cuidá-los. Enfim tinham dinheiro para manterem-se por alguns meses.
Decididos pegaram o barco da linha daquele mesmo dia, eram oito horas da noite quando entraram na embarcação. Apesar da preocupação, era evidente que estavam felizes, ficavam todo tempo junto, um sempre paparicando o outro, amavam-se e isso era o mais importante.
Na capital nos primeiros dias ficaram na casa de um primo de Cátia. Pedro saiu em busca de emprego, conseguiu alguns bicos, nada fixo. Cátia começou a trabalhar na casa de uma senhora durante o dia.
No segundo mês alugaram uma casinha bem simples, compraram só os móveis essenciais, viviam com muito pouco mais estavam extremamente felizes. As notícias de seus pais surgiam vez ou outra trazidas por algum conhecido que chegava. A moça engravidara, entretanto por complicações perdera o bebê, foi um golpe forte, pois embora pobres aguardavam a vinda do filho como um presente de Deus.
Por causa das dificuldades financeiras Pedro aceitou trabalhar em uma embarcação, ficava fora de casa quatro dias durante a semana, a esposa o acompanhava. Em uma destas viagens, um temporal destes próprios do mês de outubro fez que a embarcação naufragasse. Assim como todos os tripulantes, Pedro fez tudo que podia para evitar o naufrágio evidente, contudo a natureza mostrou sua supremacia, a água começava invadir o convés, as ondas batiam com força nas paredes, os raios pareciam serem mais um composto para deixar tudo àquilo insuportável. Quando nada mais podia ser feito, o rapaz fora ao encontro da amada que permanecia em silêncio encolhida próximo ao comando, abraço-a, disse-lhe que tudo ficaria bem, embora soubesse que estavam no meio da baía e as possibilidades de salvamento eram as mínimas possíveis, beijo-a.
Estavam com coletes salva vidas a uma boa distancia quando viram o barco emergir totalmente. As ondas fortes tornavam quase impossível à estada na superfície. Apesar de tudo lutavam para permanecerem juntos, agarravam-se um ao outro, como se se agarrassem a própria vida. Seis horas de muita luta até que as forças de ambos não agüentaram mais, sucumbiram, foram levados para o outro lado da existência juntos, assim como sempre estiveram em vida.
Os ribeirinhos acreditam que algo de misterioso envolve a morte dos amantes, pois já se passaram dez anos do naufrágio e nunca seus corpos foram encontrados. Algumas pessoas afirmam que ao passarem no lugar onde aconteceu o acidente ouvem vozes fazendo juras de amor, vêem luzes, entre outras coisas. Segundo explicação de uma macumbeira amiga minha, os dois foram levados para a cidade submersa, agraciados com a vida eterna e todas as regalias de uma divindade, recompensa esta pelo amor supremo que demonstraram um pelo outro mesmo perante a morte. Eu sinceramente acredito nela, como explicar que logo depois do barco ter afundado o terreno dos pais dos jovens ficarem cobertos de flores? Como explicar uma criança de cinco anos ter sobrevivido a um naufrágio semana passada e ter contado que uma mulher e um homem misteriosos o protegeram durante todo o tempo que esteve em perigo?