Aconteceu na UFF
ACONTECEU NA UFF
Final de 1975. Sexta-feira. Findas as aulas, o frisson. Ia acontecer no Diretório Central de Estudantes (DCE), um grande debate sobre direitos humanos. Presença confirmada de Gonzaguinha e Chico Buarque de Holanda, nossos ídolos. Convites comprados com antecedência, esgotados, segundo informações. Nos juntamos perto do prédio do anatômico, conversando animados, fazendo hora, esperando o momento de descermos o Valonguinho para a porta de entrada do DCE. O clima era de protesto e um pouco de receio. Há algumas semanas a sociedade estava chocada com a morte do jornalista Vladimir Herzog que abalou a expectativa de distensão política tão propagada naqueles dias.
Mas nós, estudantes recém-chegados à Universidade, ainda esverdeados pelos últimos anos sem sol, batalhando por uma vaga numa escola pública, sem passeios, sem cinema, sem namoro, sem notícias, porque não havia muitas mesmo naqueles tempos, sabíamos muito pouco sobre tudo o que estava acontecendo no País. Éramos apenas meninos e meninas de idades em torno dos 21 anos, ainda maravilhados com a nova vida universitária, inebriados com aquela primeira vitória pessoal, depois de merecido esforço, terminando o primeiro ano de medicina. Só queríamos ver de perto Chico e Gonzaguinha.
Na hora marcada, descemos até o DCE e lá nos surpreendemos com a quantidade de estudantes que já se encontravam na porta. Para espanto maior, um cordão de policiais fardados guardava a entrada do Diretório de mãos dadas, como fortes elos de uma corrente. Indagados, eles, abusando da ironia, diziam a todos que não haveria show nenhum, que fôssemos embora. Os estudantes não arredavam o pé e o clima já começava a esquentar. Mais policiais chegando, mais carros do exército e outras forças se acercando do local.
Não me lembro, exatamente, mas em determinado momento, uma ordem foi dada: Evacuar!
Os policiais fecharam o cerco e como num arrastão, foram empurrando a massa de estudantes em direção à estação das barcas. Cenas de violência. Revolta. Impotência. Fragilidade. Medo.
Não fale, não grite, não olhe. Pode parecer provocação.
Marcos sorriu no meio do nosso grupo, sussurrando, comentando a truculência dos policiais, sem entender direito o porquê de todo aquele aparato policial. Uma mão forte o pegou por traz, pela camisa. Em poucos segundos, vimos o nosso amigo ser arrastado para não sei onde, sumindo na multidão de estudantes e policiais que tomara conta da Avenida Rio Branco.
Era só o começo.
Nos separamos.
Eu e Lino tentamos em vão, em meio à turba, acompanhar o que estava acontecendo, ver para onde estavam levando Marcos. Vimos quando dois soldados o conduziram até a beira da praia. Enquanto isso, os outros colegas correram até a casa de Marcos, no Ingá, para avisar a família dele.
Em pouco tempo o pai, gerente de um grande banco em Niterói, chegou ao local. Aflito, queria saber o que se passara. Cordato, procurava conversar com os policiais, talvez percebendo a gravidade da situação. Perguntou o que o filho fizera. Eles responderam que o rapaz debochara dos policiais, que nós, os “grandes amigos”, o abandonáramos no tumulto, que eles, na intenção de protegê-lo, o resgataram e o menino deveria estar são e salvo, em alguma delegacia, aguardando a presença dos responsáveis. Tamanha desfaçatez irritou Lino que argumentou com os policiais tentando esclarecer o ocorrido, mas foi ameaçado de prisão. Lembrei-lhe que estávamos em situação desfavorável e que nem eu, nem ele teríamos, no momento, alguém que intercedesse por nós.
O pai, desesperado, percorreu conosco todas as delegacias da cidade. Nada. Ele não estava em lugar algum.
Uma sensação de vazio tomou conta de nós e o pranto inundou nossas faces, embotou nosso pensamento. Um aperto no peito nos oprimia e tínhamos a sensação de que havíamos feito algo muito errado. O olhar desolado, atônito, daquele pai acentuava a sensação de culpa.
Choramos. Onde estaria Marcos? Estaríamos vivendo um pesadelo?
Aquela seria uma longa noite em nossas vidas.
Algum tempo depois chegou uma viatura ao local onde estávamos e do porta-malas surgiu o menino de 17 anos apavorado, pálido, mudo, de olhos arregalados, vermelhos de tanto chorar. Respiramos aliviados. Marcos estava bem, assim nos parecia.
Os dias que se seguiram foram confusos e cheios de tristeza. As aulas foram paralisadas. Quando recomeçaram, não podíamos andar em grupo, apenas aos pares, não podíamos falar sobre o que estava acontecendo; havia um clima de censura e medo no ar e o uniforme verde-oliva passou a dividir conosco os espaços da Universidade. Soubemos que o DCE fora tomado e totalmente destruído, a diretoria dizimada; alguns colegas mais velhos, de outras turmas, entraram para a clandestinidade.
Marcos ficou ausente alguns dias e quando retornou mostrou-se retraído, nada falou sobre a experiência passada, mesmo quando abordado. Finalmente nos pediu que esquecêssemos esse episódio.
Não falamos mais, mas não esquecemos.
Ao contrário, é como se, em nós, tivesse se aberto uma porta. Para o desconhecido.
Para além daquele mundinho de dissecações, fórmulas bioquímicas, ciclos vitais, princípios ativos, células, tecidos, órgãos e sistemas, havia um outro mundo cheio de iniqüidades, de injustiças, de dominação, que nos convocava a participar e contava com a nossa energia e juventude para que pudesse ser transformado, para que pudesse ser mais igual, mais justo, mais livre.
Final de 1979. Sexta-feira. Encerramento das aulas. Quase dois mil estudantes invadem o espaço, eufóricos, cheios de orgulho e de alegria, na grande festa de reabertura do DCE da UFF.
Em memória de Marcelo Carlos da Silva Cancela.
Lucia Elena Ferreira Leite