Fica de olho, Tonho!
O ano é 1945, final de inverno, início do corte das madeiras ou seringueiras, ou seja, início da produção de látex daquele ano. No porto de Guajará-Mirim, cidade rondoniense fronteira com a Bolívia, tendo com marco divisório o Rio Guaporé, a movimentação é intensa com o embarque dos passageiros, dentre eles muitos "arigós" com destino aos seringais localizados ao longo dos Rios Guaporé e Mamoré. As embarcações em que os "arigós" viajavam chamavam-se "catraias", eram embarcações parecidas com as "chalanas" do Mato Grosso. No interior dos barcos a arrumação de bagagens, amarração de redes nos melhores lugares era uma disputa alegre e alvoroçada.
-"Seu" Mano, segura o punho da rede desse lado qui'eu vou amarrar o outro punho do outro lado.
-'Tá bom, mas adispos tú me ajuda com o meu punho aqui.
-Zefinha? - Qui'é, Tonho? Impurra o caxote de galinha prá lá qui'ele tá atrapaiando nos meio.
-Pode deixar "seu" Tonho qui'eu empurro daqui. Comentou solícito, um passageiro.
-Brigado! Sua graça é? -Barrozim, seu criado!
E assim as conversas se entabulavam servindo de ponte para as apresentações de todos. Em pouco tempo o pequeno barco estava regurgitando de gente por todo o seu interior. Os cumprimentos e apresentações criando um clima alegre e descontraído entre os passageiros.
-Virge Maria, isso aqui tá tão intanisado de rede que na hora que tiver todas estirada da popa a proa num passa nem pensamento ensebado. Alguém comentou.
Finalmente o barco partiu rio acima, com seus passageiros em alegre algaravia de comentários sobre expectativa da viagem e da vida que esperava alguns do "brabos" embarcados. (a título e explicação, “brabo” era denominação dada aos nordestinos recém chegados aos seringais da Amazônia) A embarcação seguia lotada de solteiros e casais. O dia passou e chegou a noite, e com ela a hora dormir. Primeiro um atou a rede pelo meio da "catraia" atrapalhando o vai-e-vem de todos, foi o bastante para daí a pouco todos estarem deitados. O zum-zum-zum das conversas foi diminuindo e em instantes ouvia-se somente o ressonar dos passageiros cansados da viagem em meio a total escuridão da noite sem lua. As horas avançaram e entre roncos e suspiros ouviu-se um murmúrio quase inaudível:
-Tonho? Ô Tonho? Toooonho...?
-Qui'é Zefinha?
-Tú tá dentro d'eu?
-Eu..? Não!
-Hiiii... Tonho! Intão tão!