A bailarina e o beija-flor
O dia quando amanhece no pantanal tem cheiro de esperança.
O horizonte é um colorido singular, um lilás dividido de amor entre o laranja e o azul.
Se tem chuva... as gotas dançam na água corrente ou empoçada, é o bailado da dádiva que caracteriza a região: a água.
Os pássaros cantam, todos eles, todos mesmo. Saúdam o sol, bendizem a nova oportunidade de vida que vem com o amanhecer.
As flores se abrem... oferecendo-se para o seu príncipe encantado; aquele que vem beija-la sempre e que não vê a diferença de espécies como um entrave mas como uma loucura... uma loucura de amor: O pássaro beija-flor.
E ele vem afoito... cheio de energia, batendo sofregamente as assas mantendo-se quase parado no ar para tocar sua amada e no seu beijo dar continuidade à vida natural....
Esta poderia ser a história de muitos beija-flores, se não fossem tão frágeis. Se não tivessem seus ninhos invadidos... profanados pela curiosidade humana, ou castigados pelas forças da natureza.
O menor pássaro, o mais belo, mas estranhamente o mais forte é o mais frágil de todos. Quando lhe é ceifado o aconchego do ninho, quando seu corpo ainda não conhece o calor das penas, quando o seu bico ainda é uma cartilagem dependente, é presa fácil. É fatalidade. É morte.
Mas não foi isso que aconteceu com um determinado beija-flor. No seu caminho , apareceu uma criança. Sim... uma criança que não permitiu que a curiosidade fosse maior do que a sua ternura, do que o sentimento interior que trazia em seu coração. Uma criança que não teve muitas oportunidades na vida, que apesar de Ter uma família estruturada, passou desde cedo por dificuldades como outras tantas iguais a ela. Mas uma criança que queria voar como os pássaros, que dizia que os pássaros dançavam no ar, uma arrevoada para ela era um espetáculo de dança, e a cada revoada uma nova coreografia.
Essa criança encontrou o corpinho só com penugens, à mercê da própria sorte no chão batito, ao lado do tronco da arvore que abrigava o ninho desfeito. Aproximou-se com mansuetude. Com o dedo em haste tocou seu abdome, queria certificar-se se ainda havia vida, na tremula resposta do bichinho, formou uma concha com sua mão e abrigou nela o passarinho. Com a esquerda fez a cama, com a direita o teto e o aqueceu.
O sol brilhou mais forte naquele dia. A natureza estava salva.
Levou-o para casa, fez de seu corpo de menina o aquecedor natural ao lado do ninho improvisado em camisetas surradas que ela amontoou ao lado de seu travesseiro. Ao levantar-se banhava-se com o ninho depositado num canto protegido dos respingos da água que lhe refrescava a pele. Ao alimentar-se, alimentava o animal que se aninhava em seu colo, sustentado pelos joelhos pressionados um com o outro, os pés em ponta pra que ele não escorregasse no declive natural da postura humana.
Ao ir para suas aulas de dança e música no Moinho Cultural, a pequena bailarina fazia seu caminho cantarolando para o beija-flor as notas musicais, contando-lhe histórias de suas aulas de ballet antes que ele acontecesse na sua vida.
Isabelle, sim... é esse o seu nome, mudou sua postura. Dividida entre a paixão pela arte da dança, pelo busca do saber, pelos acordes musicais.... desocupou sua mochila dos cadernos, das roupas apropriadas para o exercício da dança e limitou-se a observar as aulas, atentamente, exigindo de sua memória, de sua visão de sua audição o que podia, para em casa, às escondidas, tentasse reproduzir o que via nas aulas. Isabelle recusava-se a fazer aulas de dança, mas por que,se ela amava dançar? Isabelle recusava-se a Ter aulas de musica, mas por que se ela amava a musica? Ficava na sala pedagógica, amoada, sentindo-se ameaçada, com a mochila presa , colada no corpo sempre na ultima carteira, onde nenhum colega pudesse tocar-lhe as costas. Isabelle protegia seu beija-flor.
Seus desenhos retratavam flores, muitas flores que ela fazia questão de coloca-los cuidadosamente dentro da mochila, como que querendo manter seu protegido o mais próximo possível de seu habitat natural.
Um dia o beija-flor começou a bater as assas, Isabelle experimentou a dor da separação. Seus olhinhos viviam cheios de água, e sua mão se cansavam de segurar a mochila nas costas. Como se quisesse impedir que algo ciasse e se quebrasse . Não saibamos, mas Isabelle temia que percebêssemos que o seu beija-flor ao bater assas, denunciasse sua presença.
Mas a natureza não deixou de cumprir seu destino. O beija-flor um dia voou. Fez um ninho próximo à casa de Isabelle, e depois de um tempo, fez outro, na sua Segunda família, O beija-flor não abandonou a bailarina. Quando ela dança na calçada nas suas horas de brincar... o beija-flor a rodeia, num pax-de-deux inigualável.: A bailarina e o beija-flor.