Mãe Viu, e se Mãe Viu...

Ao chegar em casa, no velho sobrado de Rio do Braço, na noite do adeus, quando o luto ainda nem tinha se ajeitado direito dentro do peito, um fato estranho — desses que a ciência não explica e que o povo chama de “assombro manso” — aconteceu.

Minha mãe não falou com ninguém. Seguiu direto para a cozinha, como quem busca distração ou consolo nas tarefas de sempre ou recomeçar o dia mesmo já sendo noite... Ao cruzar a sala de assoalho onde a máquina de costura sempre morou num canto, estacou. O tempo também. Parou tudo. Seus olhos marejaram, o coração acelerou: ali, sentada com serenidade, estava sua mãe — costurando e cantando baixinho, como fazia nos tempos de paz.

Minha mãe não conseguia se mover. Aproximou-se devagar, tomada por um misto de espanto e ternura. Por longos segundos ficou ali, apenas olhando, incrédula, até que encontrou forças para murmurar:

— Mãe…?

A aparição levantou os olhos, como se escutasse de muito longe. E então começou a se desfazer, devagarinho, feito névoa ao sol ou promessa esquecida.

Naquela mesma noite, contou tudo ao meu pai. Ele não duvidou. Acolheu cada palavra com a fé simples dos que amam. Abraçou minha mãe com firmeza.

Depois disso, minha mãe começou a ter sonhos pesados, desses que acordam a gente no meio da madrugada, suando, com os olhos pedindo resposta.

— Sonhei com mamãe… Ela estava com sede. Pedia água.

Foram quase dois meses ouvindo essa súplica noturna. Até que, numa manhã quente, meu pai tomou uma decisão: levaria minha mãe até o cemitério de Castelo Novo, lá pras bandas de Ilhéus, onde repousava sua sogra.

— Vamos lá.

Pegaram a Rural Willys e foram até o cemitério de Castelo Novo, povoado de Ilhéus. Foram em silêncio, cada um com seu pensamento, embalados pelos buracos da estrada e pelos sussurros da saudade.

Levaram flores frescas e um copo grande de vidro. Chegaram, limparam o túmulo com reverência e carinho. Colocaram as flores, depois o copo cheio d’água, como quem oferece um presente a um espírito sedento de lembrança e amor.

Eu era pequeno demais, mas me lembro. Lembro do gesto. Lembro do silêncio que não era vazio, mas cheio de sentimento. Lembro do vento leve, da mão dela ajeitando as flores com tanto amor que parecia conversar com elas. Lembro do olhar da minha mãe, pingando ternura... Lembro do gesto simples, mas sagrado, de depositar aquele copo d’água como quem oferece um bálsamo à eternidade.

Quando já iam saindo, ela olhou pra trás. E o copo estava seco. Não tombado. Não rachado. Seco.

O sol estava forte, é verdade. Mas não tão forte assim. E o tempo... tinha sido só meia hora. Não dava pra entender. Verificaram tudo: nada de vazamento, nem marca de água no chão. Apenas um copo vazio, como se alguém, do outro lado, tivesse bebido.

Sem dizer palavra, ela encheu de novo — com o cuidado de quem reza. E foi só então que se sentiu em paz.

Daquele dia em diante, os pesadelos cessaram. As noites voltaram a ter estrelas. O coração dela, antes atormentado, se aquietou como rio depois da cheia. Dormia em paz. Seus olhos, que antes choravam, agora guardavam uma serenidade doce. Como se, enfim, tivesse matado a sede da saudade. Porque, talvez, naquele gesto simples e sagrado, tenha dado à alma da finada o que toda alma deseja: cuidado.

E à sua própria, a certeza de que o amor atravessa mundos — e sacia.

Anos depois, num daqueles serões em que a lembrança se senta à mesa, perguntamos:

— Pai… o senhor acreditou mesmo naquele dia?

Ele suspirou, olhou-nos com a sabedoria mansa de quem já viu o mundo desabar e seguiu em frente, e respondeu:

— Meu filho, quem sou eu pra duvidar? Sua mãe não é mulher de inventar coisa. E mesmo que fosse a dor, o cansaço, a saudade ou a imaginação… ela viu. E se ela viu, então viu. Eu estava atrás, não enxerguei nada — mas se algo lhe deu esperança, se trouxe consolo, se acalmou o coração, se matou um pouco da dor, então pra mim é mais verdadeiro que muita coisa que se enxerga com os dois olhos… quem sou eu pra dizer que não foi real? Não é a vista do olho que importa nessas horas, é a vista do sentimento.