DÚVIDA EXTREMA

Haroldo era conhecido em toda parte como arruaceiro. Durante a vida, desde muito pequeno, vivia às turras com os colegas do grupo escolar e à medida que foi crescendo, arranjou uma ruma de inimigos por todo canto. Vivia de olho roxo, mas sabia brigar como poucos e nunca levou desaforo para casa.

Depois de se casar, brigou com todos da família da mulher, até com o sogro, aquele homem manso quase um santo que foi sacristão a vida toda.

A sua mulher disse que ele nunca tinha levantado a mão para ela, mas eu tenho cá minhas dúvidas, por conhecer muito bem a peça ruim que ele foi, porque eu não nasci hoje não. A mim ninguém engana, não...

De uma hora para outra, Haroldo se danou a passar mal. Numa noite, estava jogando no bilhar de Tota Medrado e, sem qualquer motivo aparente, desmaiou e só foi acordar quando já tinha sido levado para a casa dele.

Depois desse dia, foi mais de uma vez no posto para se consultar, mas como o médico nunca estava, ele tomou os remédios recomendados por dona Mocinha que era faxineira no posto de saúde até na semana passada e que pelo tempo que passou junto com médicos e enfermeiras, sabe mais de remédios do que essa gente vestida de branco.

Mas apesar dos remédios, a ziquizira só fez aumentar.

Haroldo, amarelo que só a cera do santíssimo, foi piorando cada vez mais e como a viúva é muito católica, foi pedir ao padre para dar a unção dos enfermos para ver se o marido melhorava por conta da intercessão dos santos.

Improvisou uma espécie de altar na mesinha de cabeceira com a imagem de Nossa Senhora da Penha de quem ela é muito devota e quando o padre chegou, ela saiu do quarto para ver se o marido se confessava para diminuir a culpa, porque pelas histórias que eu sei e pelas desconfianças que eu tenho daquelas saídas tarde da noite, das histórias das emboscadas para morte por encomenda, dos cabras que desapareceram sem deixar rastro depois das desavenças com Haroldo, a viúva tinha a certeza de que quando o marido morresse ia com tripa e tudo para as profundezas, porque aquele horror de marcas na coronha do revolver, nunca foi enfeite não.

O padre recitou as orações, passou o óleo na testa e no peito do finado Haroldo e já para o final, fez as perguntas do protocolo, que são parecidas com as do batizado:

- Tu confessas diante de Deus que estás sinceramente arrependido dos teus pecados?

- Sim, padre. Respondeu Haroldo com a voz sumida de quem está entregando o couro às varas.

- É de todo coração que entregas a tua alma nas mãos do Senhor?

- Sim, padre...

- Tu reconheces e proclamas que Jesus Cristo é o filho de Deus e salvador do mundo?

- Sim, padre...

- Tu renuncias às glórias do mundo e confias na graça da misericórdia divina?

- Sim, padre.

- Renuncias a satanás e a todas as suas tentações?

Haroldo ficou calado por um bom tempo. O padre repetiu a pergunta mais duas ou três vezes. Até que já sem muita paciência, insistiu.

- Responda, meu filho. Renuncias a satanás, a todas as suas obras e as suas tentações?

Aí Haroldo respondeu.

- Sabe o que é padre. Eu passei a vida fazendo trampolinagem. O tempo todo, só colecionei inimigos. Será que é bom arranjar mais um intrigado, logo agora, que eu estou mais para lá do que para cá?

ADVERTÊNCIA

Na construção deste texto, imaginei estar diante de cada um dos leitores e fiel à minha origem Pernambucana, reproduzi nossa maneira de contar as histórias, de forma coloquial e linda modulação melodiosa.