O CASO DA PRESSÃO ALTA NO HOSPITAL VETERINÁRIO
O Chamado da Missão
Todo mundo em Santa Filomena conhece seu Ezequiel. E quem não conhece, pelo menos já ouviu falar — porque onde ele mete o bedelho, nasce uma história. Condutor de ambulância há mais de vinte anos, o homem é uma lenda viva no pronto socorro da cidade.
De fala empolgada, jeito prestativo e um talento natural pra transformar o cotidiano em teatro, seu Ezequiel era o tipo de pessoa que conseguia animar até plantão vazio.
Naquela manhã ensolarada, lá estava ele, encostado na portaria da emergência, proseando, quando veio a notícia:
— Seu Ezequiel! Chamaram o senhor lá dentro. Dizem que é urgência!
Ele levantou com gosto, como quem vai receber medalha olímpica:
— Obaaa! Missão! Missão! Sabia que hoje era meu dia de brilhar!
Na coordenação, o chamado veio sem muitos detalhes:
— Solicitação na zona rural, ali no Arraia da Ajuda. É no hospital veterinário. O paciente tá com pressão alta e precisa ser transferido urgente. Não sabemos se é homem ou mulher. Nem a espécie. A linha telefônica caiu com a chuva de ontem à noite. Descobrimos mais lá.
Ezequiel coçou o queixo:
— Pressão alta? É agora! Preciosa, te prepara que hoje a missão é daquelas!
Subiu animado na ambulância — “Preciosa”, como ele a chamava com carinho — e partiu com a enfermeira dona Tereza, sua parceira de plantão e de sustos.
A Travessia do Desespero
Mal saíram da cidade, o primeiro desafio surgiu: a ponte que dava acesso ao Arraia da Ajuda estava com um pé na cova. Destruída pela chuva, restava apenas a opção de atravessar o riacho por um atalho improvisado.
Seu Ezequiel examinou o terreno, mediu com os olhos, cuspiu na palma da mão (só pra manter o ritual) e murmurou:
— Preciosa, hoje é dia de aventura.
— O senhor não tá pensando em atravessar aí, né? — perguntou dona Tereza, já suando frio.
— Não tô pensando. Já tô no meio!
E jogou a ambulância dentro da água como quem mergulha de cabeça numa piscina rasa. No início, tudo bem. Mas a água foi subindo, e a Preciosa começou a tossir, engasgar, fazer barulho de pato asmático.
— Aguenta firme, minha guerreira! — dizia ele, acariciando o volante como quem embala um bebê.
Dona Tereza, agarrada no painel:
— Ai, meu Deus! Eu não sei nadar! Eu nem gosto de água!
— E eu não gosto de calmaria! — retrucou Ezequiel, rindo alto.
Entre ladainhas e gritos abafados, atravessaram o riacho. Preciosa, toda molhada, roncando alto; dona Tereza, branca feito gaze; e Ezequiel, todo orgulhoso:
— Viu só? Fé e marcha lenta vencem qualquer correnteza!
O Hospital Fantasma
Chegaram ao hospital veterinário ainda com os nervos frescos. Mas ao baterem no portão, deram de cara com correntes e cadeado. Nem sinal de gente.
Dona Tereza tentou contato com a base, mas o rádio havia morrido afogado junto com o bom senso da missão. Olhou para Ezequiel, aflita:
— E agora?
Ele já estava puxando um alicate debaixo do banco da ambulância:
— Agora é resolver. A missão não espera.
— O senhor vai cortar o cadeado?!
— Vou abrir espaço pra salvar o paciente! Se perguntar muito, eu corto o portão também!
Clic-clac, corrente cortada. Portão aberto. Invadiram o hospital como dois agentes secretos numa operação de resgate veterinário.
Procuraram por toda parte. Resultado: nada. Ninguém. Só um velho cavalo deitado numa estrebaria, com cara de quem não tava nem aí.
— Acho que esse é o paciente! — disse Ezequiel, já achando graça da situação.
Sem respostas, resolveram voltar até a comunidade do Arraia da Ajuda.
Descobertas e Improvisos
Chegando lá, foram recebidos com festa. A população correu, pedindo curativos, atenção, até chá de boldo. Dona Tereza armou um mini ambulatório debaixo de um pé de manga e foi atender todo mundo com o que tinha.
No meio do corre-corre, chegou um senhor de bota suja e chapéu de palha, anunciando:
— Eu sou o responsável pelo hospital veterinário! Tava esperando vocês desde cedo!
— A gente foi, ué! Mas não tinha ninguém, só um cavalo esparramado lá atrás.
— Pois é esse mesmo! Ele tá com pressão alta, ou coisa parecida. Precisava ser transferido, mas agora vamos ter que medicar aqui. Não tem transporte.
Ezequiel arregalou os olhos:
— Peraí... o paciente com pressão alta... era o cavalo?
— Claro! Eu liguei pedindo ajuda! Fui claro na ligação!
Dona Tereza tapou o rosto com as mãos, em estado de negação.
— A gente invadiu um hospital veterinário por causa de um cavalo...
— Invadimos nada. Salvamos a vida de um cidadão de quatro patas! — corrigiu Ezequiel.
Como não havia transporte, propuseram usar uma carroça para levar o cavalo até o hospital da cidade. Só que faltava um detalhe: tração.
— A gente atrela na Preciosa! — disse Ezequiel, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
A Travessia Final
Todo mundo se mobilizou: um grupo pra levantar a ponte com pedaços de madeira, outro pra colocar o cavalo na carroça com jeitinho.
Dona Tereza, que mal se recuperou da travessia anterior, foi encarregada de dar medicação ao “paciente” com o veterinário.
Quando tudo estava pronto, começaram a travessia. A Preciosa foi puxando a carroça devagar. A ponte, remendada com tábuas tortas, estalava mais do que pipoca em panela quente.
— Vai com calma, Preciosa! Na manha, minha filha! — dizia Ezequiel, no volante, como um pai guiando a filha no primeiro dia de balé.
Dona Tereza rezava. O veterinário suava. O cavalo roncava baixinho, anestesiado. E a comunidade inteira olhava, torcendo.
O som da madeira rangendo parecia filme de suspense. Mas, num milagre digno de novela das seis, conseguiram atravessar.
Do outro lado, gritos, palmas, e um grito emocionado de Ezequiel:
— MISSÃO CUMPRIDA!
Mais Uma Prosa no Currículo
Na volta ao hospital, seu Ezequiel estacionou a Preciosa como quem estaciona uma nave espacial. Desceu limpando o suor da testa, satisfeito.
— E o cavalo? — perguntaram.
— Foi atendido. Pressão tá controlada. Agora é só evitar sal e estresse.
Dona Tereza balançava a cabeça, ainda sem acreditar no que viveu:
— Nunca mais reclamo de plantão parado...
E, desde aquele dia, a história do cavalo com pressão alta entrou pro folclore da cidade. Mais uma no repertório do grande contador de causos: seu Ezequiel, o herói da zona rural.