O quê?

Vosmecê veio aqui pra saber sobre a história de Severino Bezerra? O filho da falecida Inácia?

Sente aí neste banquinho, moço, faz favor. Fique à vontade. Não repare na bagunça, viu? A casa é simples, mas é de gente honrada. Quer um golinho d’água? Um café?

Não?

Agora, escute bem o que eu vou te dizer, porque essa história que carrego na alma não é pra ser contada de qualquer jeito, não.

Pra começo de conversa, o Severino Bezerra era muito cabra-macho. Ah, se era. Não havia criatura neste mundão de meu Deus que botasse dúvida de sua brabeza. Sim, pois eu lhe digo uma coisa curta e certa, moço: o caboclo não se metia em encrenca à toa da qual não pudesse resolver na ponta de punhal.

Na época desse furdunço, quando Lampião ainda furava o sertão pra cima e pra baixo, já se botava por riba das costas do Severino a morte de uma dezena de desafetos. A fama dele corria longe, visse? Muito além das terras da pequena cidade de Juazeiro do Norte, onde ele morava, zunia nos ouvidos do povo as proezas de sua valentia.

O meu compadre e o folclore em torno de sua figura só tinham rival em outro sertanejo de igual fama, conhecido como Serapião das Almas. E desse aí pouco se sabia, a não ser que tinha parte com o capeta, o Bode Preto. Rapaz, esse bicho arredio morava entocado lá pros fundões da caatinga, bem onde o vento fazia a curva, longe das vistas dos homens de bem.

A verdade, seja dita, é que o velho Serapião era traquejado nas coisas do além. Falava com gente morta. Ahã... e não era em sonho nem cochicho de vento, não. Ele riscava no papel as palavras de quem já tinha virado pó. Ô se isso lá era coisa de cristão temente a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Um dia, a mãe do Severino, de quem o enfezado puxou a ruindade, bateu a caçoleta sem aviso. Da boca do povo corria o fuxico que a velha já ia tarde. Ora, ninguém gostava dela porque a surucucu carecia de freios na língua. Falava mal de todo mundo.

O tranco da morte da santa mãezinha pro coitado do Severino foi grande. Aaaah, se foi. Ficou o caboclo desarvorado de um tal jeito que, mal o corpo da defunta se ajeitou no colo da terra, veio ele ter comigo naquela noite medonha.

— Galdino, vosmecê vai me levar inté a tapera do velho Serapião das Almas.

— Oxente, homi! Vosmecê endoidou de vez, é? Aquilo lá tem parte com o cão! — eu disse, assustado.

— Vixe, deixe de ser abestado, homi! Eu lá tenho medo de criatura esquisita feito ele? Minha santa mãezinha finou-se num repente. É capaz dela precisar de alguma coisa lá do outro lado. O velho Serapião fala com quem já bateu a caçoleta. Pois então?

— Ô, meu Padim Ciço! Lá vou, não! Deus que me defenda — falei, fazendo o sinal da cruz.

Aí o porquêra do Severino, como quem não queria nada, puxou a peixeira da cintura e começou a cortar o vento com ela.

— Deixe de ser cagão, homi. Vosmecê já conhece bem o caminho inté lá. Vosmecê tá me fazendo uma desfeita, sabia? E homi desaforado, mesmo sendo amigo meu, eu deito a faca no gorgomilo sem vacilar. Fique atento.

Pois foi bem assim que Severino me convenceu a ir com ele, cada qual montado no seu jegue, pras profundas da caatinga, numa escuridão dos diabos.

Rapaz — me lembro bem — o vento soprava forte naquela noite. Levantava redemoinhos de poeira. A lua, muito da preguiçosa, dava pouco préstimo pra alumiar o caminho. Os braços retorcidos dos mandacarus pareciam os de uma alma penada, visse? Coisa esquisita que só.

O silêncio era tão grande, mas tão grande, que qualquer estalo no mato fazia meu coração querer saltar pela boca. Severino, por outro lado, seguia adiante mangando de minha pessoa. Disse que eu mais parecia uma velha cheia de cisma. Depois de umas tantas horas, já de destino certo e enveredando por trilhas e atalhos, calhou de a gente ver ao longe o casebre do feiticeiro.

A luz buliçosa das velas, à mercê do vento, escapava pelas gretas das paredes pregueadas da tapera. Aquilo batia nos olhos da gente feito um farol maligno dentro do negrume da noite. Dava medo. Eita visão dos infernos. A vontade era me escafeder dali mato adentro. Olhei pra peixeira escorrida na cintura do meu compadre e engoli o pensamento.

Mal invadimos o terreiro do casebre sombrio, o meu amigo não contou passo. Apeou do jegue e mandou pernas na direção da entrada do cafuá do bruxo. Não bateu palmas anunciando a chegada. Nem teve a educação de chamar o dono da casa pelo nome. Simplesmente empurrou a porta e emburacou lá dentro, emproado, que nem galo velho quando faz presença pra galinha nova.

E no rastro dele fui junto, não com a mesma valentia, pois não me criei pra desafiar alma penada. Ainda mais que sou devoto de Santo Antônio, temente a Nosso Senhor.

Lá estava o Serapião atrás de uma velha mesa carcomida de cupins.

Cruz credo! Não conhecia o cabra de presença porque dele só ouvira falar histórias. De fato, como se dizia por aí, o homem mais parecia um cão chupando manga de tão feio. O ambiente agourento da tapera e a luz tremeluzente das velas em volta dele faziam sombras dançarem naquela cara ossuda, piorando ainda mais a sua figura.

De começo, após a nossa entrada repentina, o bruxo não nos deu atenção. O Severino, encrenqueiro de marca, tomou aquilo como desaforo. Rapaz, não é que o porquêra pigarreou alto, assim como quem puxa catarro pra limpar o gorgomilo, e cuspiu no chão da sala do caboclo?

Aí o caldo entornou.

Os olhos negros da cara mofina do velho, pousados no papel na mesa, tomaram prumo e se endireitaram na nossa direção. Aaaah, rapaz, só da mirada do caboclo já veio um bafo gelado que me arrepiou o espinhaço todinho.

O meu compadre, lá daquele jeito grosso de ser, não tomou tento e foi logo intimando:

— Serapião, olha só, comi muita poeira nestas estradas pra mode de vosmecê me dizer como anda a minha santa mãezinha lá do outro lado. A pobre bateu a caçoleta não faz nem sete dias. Quero saber se ela tá precisada de alguma coisa.

Moço, tenho pra mim que o bruxo já devia estar de conluio com o Sacripanta, em meio d’algum tipo de ritual. Porque assim que meu amigo cuspiu a intimação, o endiabrado começou a riscar a folha de papel num apressamento desembestado. Os olhos do cabra reviraram, branquearam e fugiram pra não sei d’onde. Por pouco não mijei as calças quando ouvi a voz espremida e roufenha da velha Inácia, mãe de Severino, saindo da boca da criatura. Foi bem assim:

— Fio... meu fio... Severino... meu menino... tô no fundo do inferno e não tô gostando nada deste diacho de lugar. Vosmecê tem que me tirar daqui, meu fio.

— Oxente, e eu faço o quê, mãezinha?

— Meu fio, meu menino, já fiz um combinado aqui com o Belzebu. Vosmecê só precisa me ajudar.

Foi bem nessa hora que o Serapião das Almas começou a se estrebuchar. Vixe Maria, mãe do céu! O homem ficou uma coisa medonha. As mãos a bolinar o papel pareciam querer se afastar do serviço da escrita endemoniada. O traquina malacabado do velho fazia esforço pra mode de se livrar do encosto maligno, mas não tava conseguindo, não.

Daí, vosmecê agora vai botar dúvida nas minhas palavras, mas te juro que não sou cabra dado a mentir à toa, visse? Por riba da cabeça do velho Serapião começou a se formar uma nuvem empanturrada, escura, parecendo tempestade braba. Ahã... e dentro da sala, veja vosmecê. Sim, senhor. Uma nuvem! Uma nuvem dentro da sala. Homem do céu, vosmecê acredita num negócio desse?

Mas segure o assombro, moço. O pior mesmo vem por aí. De dentro da nuvem começou a brotar um mundaréu de criaturas medonhas, escapulindo das profundas

Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, pensei, o Serapião tinha aberto a porteira dos infernos!

Senti o coração saltar no gogó, me dando falta de ar.

As criaturas bisonhas se misturavam de carne com carne, grudadas umas nas outras: homens, mulheres, ratos, baratas, esqueletos humanos. Era uma força de bichos que não dei conta de atinar. Todos malformados. Um por riba do outro, o outro por riba de um. Olha, era uma misturança que fazia inté mal pros olhos do vivente.

E no meio daquele rebuliço das profundas, entre almas e demônios, não é que apareceu a cara da velha Inácia, cravada no bucho do Bode Preto?

Vixe Maria, mãe do céu!

Eu tentei me escafeder mundo afora, mas meus gambitos travaram. Lá do alto, a surucucu mandou recado pra Severino, botando minhoca na cachola dele:

— Meu fio, presta atenção. O coisa-ruim aqui me aprometeu que, se vosmecê sangrá, esfolá, matá pra mais de trinta cabras, ele bota minha alma no corpo outra vez.

— Mãezinha, a senhora tem certeza?

— Oxente, se não tenho! Pode começá com o Serapião aí, esse fio d’uma égua parideira, que num tá fazendo gosto d’eu proseá com vosmecê. Mata ele. Cutuca a peixeira velha no bucho desse lazarento.

Rapaz, não deu tempo de nada, visse? Foi num repente.

O Severino, esporeado que nem galo de briga, correu com a peixeira na mão, mergulhou por riba da mesa e, num corte de banda, sangrou o gorgomilo do velho Serapião. O desinfeliz emborcou de cabeça, virado de pernas pro ar. O homem não parou o serviço encomendado, não. O sangue do bruxo espirrou pra tudo quanto foi canto.

Vi tudo com estes olhos que a terra há de comer. Enquanto Severino golpeava o corpo estrebuchado do outro atrás da mesa, lá do alto, dentro da nuvem, as criaturas dos infernos se agitavam. Parecia um ninho de cobras ao redor do bode preto, que levava a cara da velha Inácia pregueada no bucho.

Ela ria alto, feliz feito passarinho solto de gaiola, a maldita. Num repente, os olhos malignos dela caíram na minha pessoa. Ai, ai, meu Senhor Jesus Cristo... senti naquela hora a coisa ficar mais feia ainda. Um sorriso murcho da boca chupada da velha me tirou o prumo, e por pouco não desmaiei. A maldita me jogou essa no meio daquele atropelo todo:

— Severino, meu fio, esse aí já se foi. Larga dele. A alma já desencarnou e tá vindo pra cá. Agora, pega aquele estrupício lá, ó. Galdino é fuxiqueiro de marca. Estripa esse desgraçado também.

Daí pra frente, moço, pouco posso dizer. Não sei o que deu no meu compadre, meu parceiro de traquinagens da infância. Ele se levantou num pulo, todo manchado de sangue do velho Serapião, e se virou pra mim. Não disse palavra, mas os olhos dele diziam: vosmecê vai morrer, cabra!

E eu, de bobo não tenho nada, nem pedi explicação. Busquei forças não sei d’onde e destravei as pernas. Tomei o vão da porta escancarada pra noite e me larguei embora daquela tribulação maligna. O jegue ficou pra trás. Me enfiei desesperado no mato da caatinga, caindo, levantando, enquanto o riso da velha Inácia me azucrinava os ouvidos.

Quem sobreviveu àquela tragédia não esquece. Corri inté a cidade, fazendo o maior barulhão que aquele povo já viu. Eu berrava alucinado nas ruas empoeiradas de Juazeiro, alertando que Severino vinha estripar gente de bem pra resgatar a velha Inácia das garras do capeta. Muitos fugiram, outros não acreditaram.

Então, um pequeno grupo se armou de facas e armas de fogo pra esperar o lazarento nos limites da cidade. Foi assim que vimos o meu compadre, acompanhado da velha Inácia, desenterrada, apodrecida e amarrada no meu jegue. O couro encarquilhado da finada se rasgava em feridas profundas. Minhocas passeavam pelos beiços murchos, entrando e saindo das carnes abertas. O cabelo desgrenhado tapava partes da cara chupada.

Mas o pior era a pestilência desgraçada de podridão, moço! Era um fedor de carniça a empestear tudo à nossa volta. O pessoal armado tapou o nariz, engoliu o nojo, mas ninguém desviava a vista daquele desmantelo dos infernos. Quando a luz bateu de um certo jeito nas fuças da surucucu, vi a danada rindo, debochada, fazendo troça da cara apalermada do povo.

O Neco Pedreira, que tinha a língua solta e a mão firme no gatilho, botou peito e gritou:

— Pare onde vosmecê tá, Severino, seu desgraçado!

Se ele parou? Parou nada.

Quando o cabra apeou do jumento, a faca rombuda e os olhos dele tomaram brilho dentro daquele breu. Ninguém amoleceu o couro. Começamos a atirar. Os animais de carga, e a velha também, tombaram no chão. Mas Severino, não! O homem tava de corpo fechado. Nem bala entrava na carcaça do vivente! Ele berrou, correndo pra cima da gente.

Eita que foi um Deus nos acuda. Um desespero sem tamanho. Era só rastro de povo correndo pra tudo quanto era lado. Quem corresse mais chorava menos, porque Severino ia passando a peixeira em todo mundo. Era no pescoço, nas costas, nos braços, nas pernas... vixe... me dá um engasgo de choro só em lembrar...

(...)

Sim, obrigado, já estou melhor.

Então, como eu tava dizendo, naquela confusão dos diabos, o caboclo que o Severino não lanhava uma boa ferida pro resto da vida, morria estrebuchado, segurando as tripas no meio do mato. Olha esta cicatriz aqui nas minhas fuças. Tá vendo? Não nasci zarolho, não. Foi ele quem fez.

Bem... hum... vou dar o causo por encerrado. Não tenho mais o que dizer. Essa história que eu te contei já vai há muito tempo, sabe? Nunca mais botei os pés lá pras bandas de Juazeiro do Norte, mas sigo bem informado do que acontece naquele eitão de terra. É verdade. O Capeta, o Demo, o Coisa Ruim faz questão de me manter inteirado de como anda o combinado dele com a surucucu.

Como ele faz isso?

Aaaah... de vez em quando me bate um encosto brabo, sabe? Entro em transe. Boto medo em todo mundo aqui em casa. Nestas horas, sou tomado pelo sentimento de desespero de alguém, vítima de Severino, que, não conhecendo a região, acaba estripado e largado pra morrer sozinho dentro da noite, em meio à caatinga.

Então, moço, vejo claramente pelos olhos do moribundo, esvaindo-se em sangue, o casebre isolado; e lá no vão da porta, alumiada pelas velas tremeluzentes, alcanço com a vista boa, encostada no batente, a figura apodrecida da velha Inácia sorrindo seu sorriso murcho e me dizendo:

— Falta pouco, Galdino... falta pouco!

 

 

Affonso Luiz Pereira
Enviado por Affonso Luiz Pereira em 05/04/2025
Código do texto: T8302404
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