Vísceras expostas
Sábado à tarde na cidadezinha do interior, geralmente, consegue ser um dia mais pacato que os demais dias da semana. Cessam as saídas dos trabalhadores para irem à fábrica, as crianças não invadem as ruas para irem ao grupo escolar. As bicicletas, as carroças e os poucos automóveis, também permanecem em casa. Estabelece-se um silêncio, quase fúnebre.
Na periferia então, tudo é mais silencioso. Exceto naquela rua da vila. Lá o silêncio do sábado à tarde seria menos funesto, que o som das chicotadas, dos açoites e insultos do domador ou os relinchos e pinotes dos animais.
Absorta e silenciosa a menina assiste semanalmente, o mesmo filme de terror. Passivamente. Como expectadora na primeira fila, assiste. Como figurante faz parte da cena. Sente-se o pano de fundo do cenário, imóvel. Omissa. Complacente exteriormente. Em seu interior, o coração acelera, o pensamento faz mil movimentos, tenta entender por todas as vias, a loucura que presencia. Não entende, os olhos da alma choram.
Resignadamente aguarda. Amanhã é domingo, pensa. Vem outra semana, sofrimento abranda. A menina na inocência de seus 6 ou 7 anos, consegue de novo abraçar o avô-domador, sem temer seu açoite. Esperançosa de que no próximo sábado, não assistirá o mesmo filme. Doce ilusão infantil. Quando se dá conta, é sábado novamente. Os preparativos prontos e tudo começa outra vez. Sem saber explicar porque, também segue o ritual. Assume seu papel. Se posiciona no lugar de costume, sentadinha à porta da cozinha para assistir o flagelo habitual.
À cada dia, sua dor. A menina não entende a razão de um ser humano como o avô, transformar-se num ser tão cruel. Nesta tarde então, a crueldade (ou fatalidade) foi ainda maior. O cavalo rebelde (chucro na linguagem pampiana) era muito jovem. Bonito. Um pêlo reluzente cobria seu forte dorso. Brilho especial, vermelho-terra, a cor do chão do sul. Porte elegante. Valente, tinha altivez seu cavalgar, seu relinchar.
Que pena! Para o domador, uma afronta. Meu avô não poupou o açoite! Porém, quanto mais o açoite baixava, mais o animal reagia. Relinchava, escaramuçava, pinoteava com bravura, sem se deixar dominar. A ira de meu avô aumentava e redobravam forças em seus braços. A certa altura não mais se distinguia quem era homem, quem era animal. Para a menina que assistia a tudo passiva e sofridamente, o terrível duelo durou por demais naquela tarde.
Depois das intermináveis horas de triste flagelo, o desfecho fatal. Na tentativa de resistir e libertar-se do açoite, o infeliz animal feriu-se gravemente. Um dos ferros que o mantinham preso à carroça, desprendeu-se e perfurou seu abdômen rasgando-lhe as entranhas. Com as vísceras expostas, desesperadamente, corria e se contorcia o animal. Finalmente livre do açoite!
Naquele dia, quase noite, na boca da noite um gosto amargo de doce e, nos olhos da menina, uma das cenas mais chocantes que sua infância presenciou.
Fez-se em mim, o fúnebre silêncio de sábado à tarde.