Ontem, eu matei um homem.

Ontem eu matei um homem, não sei quem o era, ou como se chamava. Para falar a verdade, a única recordação que eu alcanço minuciosamente é a primazia que senti ao matá-lo. Calei-o com diligência, pude sentir suas veias pararem de vibrar em meus dedos altivos e determinados. Ali, naquela noite comum e iluminada, ele desfaleceu.

Hoje, eu acordei feliz, como acontece quase todos os dias. Então, lembrei-me que eu era eu mesmo, depois disto, o manto de esperança rasgou-se em minha face e a desídia apossou-se do meu corpo, como acontece quase todos os dias. Olhei para o ventilador e a lembrança da noite passada dominou minha mente, juntamente com a irritação que tive ao pensar que tinha de contar o ocorrido aos meus pais e, quiçá, me apresentar a algum delegado estulto. Exasperei-me, este definitivamente não parecia um dia bom para mim, como quase todos os outros.

Expliquei o caso aos meus pais. Hesitei bastante antes de lhes apresentar os poucos minutos do dia anterior que perturbariam todo meu dia de hoje. Infelizmente, minhas dúvidas estavam corretas, agora eu tinha mais problemas. A minha mãe se irrita muito facilmente com tudo e não mede esforços para ostentar a sua imaginária preeminência diante dos outros. A loucura tomava conta da velha, mas não seria eu quem diria isto a ela. Sua austeridade era emitida por ímpetos violentos que simbolizavam uma personalidade pudica e ética... Apenas simbolizavam. Minha mãe era uma cretina desiludida, me humilhava e obliterava suas ações descontroladas no dia seguinte. Uma mulher pérfida e cínica, mas ainda sim, minha mãe. O meu velho era o oposto. Um homenzinho franzino, careca, de fala mansa e lenta que chegava a agoniar o juízo. Um homem deveras indulgente, assim o era para ofuscar sua falta de solicitude. Perdoava tudo, afinal, nunca dava atenção a nada e a ninguém.

E assim, iniciou-se o meu dia, idêntico a todos os outros, não fosse o fato de que agora eu havia matado um homem. Principiou-se a velha pantomima dentro de casa. Não sei como eles conseguem repetir suas ações de modo tão impecável, parece que treinam suas atuações antes de dormir para quando amanhecer encenarem igualmente como todos os outros dias. Como de costume, a velha começara a gritar e proferir minha culpa em todos os problemas que sua memória alcançava. Meu pai, o homem lerdo e tolo, perdoou-me e disse-me que seria sensato que eu me apresentasse a alguma autoridade policial. Concordei que seria conveniente que eu me dirigisse até uma delegacia para evitar futuros problemas. Entretanto, não entendi o motivo dele me perdoar, não necessitava disto e eu não estava arrependido. Minha mãe precisou de algum tempo, mas enfim abrandou-se. Ela explicou que estava ao meu lado e que iria acompanhar-me até a delegacia. Sinceramente, eu também não entendi o que ela queria dizer com “estar ao meu lado”. Comi alguma coisa molhando a garganta com qualquer bebida e tranquei-me em meu quarto até entardecer, momento que achamos ser o mais propício para que eu confessasse meu crime. Na espera, cochilei por alguns momentos até escutar a anciã gritando para irmos logo. Tomei um gole de café e saímos de casa.

Caminhamos até o local que abrigava as autoridades policiais, estes seres estranhos que aprisionam os homens que são roubados e que roubam; mas que não prendem os que roubam e não são roubados. Era uma tarde bonita, deveria estar por volta das 4h, horário em que o sol baixo faz-me arder os olhos e lembrar dos meus tempos de colegial. Minhas lembranças sustaram minhas preocupações atuais. Pena que elas não possam servir de cárcere para sempre, para prender-me apenas aos bons momentos de minha vida e ausentar-me do presente, período eternamente conturbado de minha existência. Quando me lembro do passado encontro-me feliz, entretanto, em minhas memórias jamais há espaço para um presente sorridente. Não compreendia isso com clareza. Recordava minha juventude, sentia saudades daquele tempo em que ainda podia sonhar. Acabei por senti saudades de ser um idiota. A polidez da tarde ia definhando até que o derradeiro feixe solar extinguiu-se diante de mim. Era a noite roubando a tarde, pedindo perdão por afastar uma paisagem tão bela e delicada.

Chegamos a delegacia, eu e o meu séqüito formado por idosos. O ambiente oferecia um sofá de estofado preto rasgado, havia também uma televisão ligada com um volume muito alto, que me irritava profundamente. Também compunha a paisagem um imbecil que comia um pão com manteiga e lia um jornal. A negligência do mastigar do homem agoniava-me ainda mais que seu estranho dom de ler e ouvir a televisão num som tão alto ao mesmo tempo. Senti vontade de pedir a ele que reduzisse o volume da TV, mas pensei melhor, ele poderia ser o delegado, e com esse tipo de gente não se brinca.

O sereno da noite invadia o ambiente, eu podia escutar o passar dos carros na avenida em frente, pensei como todos aqueles seres eram apenas figurantes do palco de minha existência. Percebi que estava equivocado, era suntuosidade exacerbada para uma vida tão débil. Tivemos de aguardar o atendimento, o motivo eu não sei. Sentamos no sofá e, durante todo momento, pensei na vida e até esqueci o que fazia ali. Pensei na vida para deslembrá-la. Não fosso os estrondos que a televisão emitia, eu teria dormido. Ao término do telejornal noturno, o homem que eu supunha ser um delegado fechou o jornal calmamente, dobrando as folhas com minúcia, como se houvesse treinado para tal, e resolveu me atender. Fiquei feliz com o acontecido, afinal, o barulho da televisão não me incomodava mais.

O elemento olhou para mim untuosamente, franzino a testa, reduzindo o olhar e apoiando uma mão sobre a outra, parecia que os gestos que ele compunha eram necessários para ascender intelectualmente as palavras que viria proferir. Então comentou: - Esses muçulmanos são todos uns loucos -. Exasperei-me por uns segundos, surpreendido, mas não demonstrei. Quanta negligência! Um delegado não deveria tocar em assuntos que estão longe de sua alçada. Eu era mais importante que qualquer coisa para ele naquele momento. Irritado, mas fingindo simpatia, sacudi a cabeça em sinal de concordância ao homem sentado a minha frente, que me encarava de um jeito estranho, como se quisesse sondar-me, invadir meus pensamentos, entender o que havia dentro de mim. Fiquei tranqüilo, afinal, eu nunca expliquei o que sentia a alguém para que esse alguém entendesse o que havia dentro de mim. Observei atento o sorriso simples e ansioso do delegado ao sinal, era como se ele precisasse de alguma pessoa para acreditar nas coisas que ele mesmo pensava. O tolo carecia de apoio e isto era profícuo para mim. Quando concordei, um sorriso também apossou-se de meu rosto. Era um riso simples e envergonhado, que escondia meu cinismo e projetava simpatia. É que lembrei-me no mesmo instante das explosões das cidades japonesas, Hiroshima e Nagasaki, e perguntei-me o que os árabes pensam em relação a isso. Todavia, percebi que era uma reflexão inútil, visto que nem eu mesmo compreendia o que eu pensava sobre o fato. Muçulmanos, ocidentais, japoneses, todos somos uns loucos, eis tudo.

A noite foi abrandando, já não ouvia mais os automóveis com tanta freqüência como em poucos momentos atrás. Acabei por confessar meu crime ao delegado e aguardei que ele proferisse minha punição. Perguntou-me coisas estranhas sobre meu ato. Não conseguia compreender o que aquilo poderia oferecer a minha pena, eu matei um homem e isso era o que interessava. Indagou-me a causa que teria me levado a cometer o assassínio. Respondi-lhe que havia cometido por defesa e que o morto era um iníquo que quis roubar-me a bolsa e me ameaçou com uma faca. Na verdade, eu estava mentindo. Reagi ao assalto e fui capaz de desarmar o moleque, atirei-o ao chão e bati-lhe no abdômen, chutei-o várias vezes até perceber que estava realmente inerme, que não me oferecia mais nenhum perigo. Neste instante, senti meu coração pulsar e um desejo súbito de matá-lo apossou-se de mim. Apertei seu pescoço o mais forte que pude, fiz com calma e com zelo. Pela primeira vez na vida me senti útil, capaz de modificar algo na vida de alguém. O poder pulsava pelos meus dedos e eu sentia as vibrações das veias de minha vítima desfalecerem pouco a pouco. A polidez tomara conta da noite. Eu me senti forte, eu me senti feliz. Matei-o não por legítima defesa, matei-o por vontade e por crueldade, poderia ter evitado o crime sem o menor esforço. Porém, isso pouco parecia importar a lei, afinal de contas, ele era um pivete, provavelmente sem família, que conturbava a ordem. Eu era um rapaz sério, de família, inofensivo a ordem social. O delegado continuava com outras perguntas: - O senhor está arrependido do que fez? – Ao apresentar esta indagação, o tecido fino que compunha a estultícia do homem fora dissipado. Entendi que a autoridade queria me encurralar, eu não poderia afirmar estar arrependido, pois assim assumiria culpa. Tampouco deveria explicá-lo que não me arrependia do fato sem apresentar certo infortúnio em relação ao moleque, eu não podia parecer cruel. Então lhe disse: - É uma pena que apenas com a morte eu possa ter vivido, melhor seria que ele não tivesse me abordado. - Para ser franco, eu não experimentava o mínimo de arrependimento, eu não precisava de indulto. Também não me via como um homem cediço, que execrou sua humanidade num ato vil e cruel. Eu simplesmente me senti humano e, como todo homem, eu senti ódio e vontade de matar.

O silêncio tomou conta da sala por alguns instantes, só agora fui capaz de escutar o zumbido das moscas brincando sobre a manteiga do homem. Ele olhou-me profundamente, com um olhar piedoso, e disse para que eu não me preocupasse, que não levaria o caso adiante, visto que o morto nem documento apresentava. Provavelmente o pivete deveria ter uma família que poderia até importar-se com ele, mas, para a justiça, era apenas um indigente. Compreendi que o delegado não queria complicar-me a vida e que um despojado a mais ou a menos para sociedade não faria diferença. Ele fora camarada comigo, imaginei que talvez ficasse feliz com algum dinheiro em forma de agradecimento, entretanto, isto poderia complicar-me caso alguém soubesse. Percebi que a justiça é bem estranha e que, às vezes, um homem pode valer menos que uma bolsa.

Dionísio niilista
Enviado por Dionísio niilista em 23/01/2008
Reeditado em 26/06/2008
Código do texto: T829546