seu figueiredo

figueiredo acordou cedo, como faz todos os dias há mais de 70 anos, caminhou até a banca de jornais da esquina, a última da cidade, e comprou um dos 10 jornais que ainda são vendidos.

em casa sentou ao lado do fogão à lenha, enquanto esperava a água aquecer para seu café de cambona, abriu o jornal sobre as pernas, leu em letras miúdas, ao pé da página principal de “variedades”: Ministério de Meio Ambiente confirma a morte da última figueira conhecida”

passou à página seguinte, leu o jornal com um passar de olhos, bebeu seu café, e foi tomar conta de seus afazeres rotineiros. “vez por outra”, por assim dizer, olha para os fundos do quintal, pensava, pensava, voltava ao carpir, sobe-e-desce-enxada, olha para os fundos do quintal, pensava, pensava, voltava ao carpir, sobe-e-desce-enxada, olha para os fundos do quintal, pensava, pensava, voltava ao carpir, sobe-e-desce-enxada, nisso até o sol baixar..

à noite teve certeza, estavam errados no jornal, afinal ele não era maluco, desde que se entende por gente sabe que a árvore que sua bisavó plantara era uma figueira, e ainda estava ali, sombreando a noite sobre o casebre de madeira. dormiu pensando que os figos já não eram tão doces, mas com certeza a última figueira ainda não havia morrido.

dia seguinte, repete o trajeto casa-banca-casa-fogão, abre o jornal procurando por mais informações, um tal de técnico em alguma coisa do ministério “das árvores” dizia que estavam fazendo uma varredura à procura de possíveis figueiras perdidas, seu figueiredo pensou: como alguém perde uma figueira? e como vão encontrar alguma coisa varrendo? terminou seu café, seu jornal e foi-se às enxadas, talvez fosse o sol na moleira, a notícia confusa no jornal, o café forte demais.. seu figueiredo tomou a decisão..

foi ao seu cantinho guarda-ferramentas e voltou com um machado, e, lasca por lasca a figueira (perdida? ultima?) sucumbiu em meio à noite.. ao amanhecer a pilha de madeira foi devorada, toco-a-toco pelo fogo, vindo da boca encarvoada do fogão à lenha, os últimos frutos caídos figueiredo recolheu cuidadosamente, levou para dentro e deixou sobre a mesa de madeira falquejada.

após seu almoço, a sobremesa foram 3 dos 5 últimos figos da última figueira conhecida, talvez, pensou.. os dois restantes, figueiredo cuidadosamente cortou em 4 partes cada, depois cada parte em 2 partes menores, depositou todos es pedaços sobre uma velha gamela de madeira e deixou sob a sombra de uma árvore qualquer, sentou á soleira e viu o banquete dos pássaros visitantes.

ao final de semana contou a história ao seu filho, que vindo da capital com alguns amigos, “para mostrar a árvore do sítio”, ficou incrédulo!

o seu figueirinha questionou o pai:

- mas porquê?

com toda a sinceridade seu figueira respondeu:

- eu que não queria ver ela desaparecendo pedaço à pedaço, como as lembranças que tenho abaixo da copa dela, assim saindo tudo de uma vez, o espinho dói menos, os pássaros que decidam onde vão levar a sorte de ver brotar a primeira “nova-figueira”, sempre é melhor muitos recomeços do que um triste final.

@sao_so_letras