O TONINHO QUE TREMIA - a versão completa
Do outro lado da rua, da direita para a esquerda, cerca de trezentos metros de comprimento, estavam o empório do Sr. Eulásio; a farmácia do Bigode; o Banco do Sr. Darci, ninguém falava Banco Econômico tal, era banco do fulano; um terreno enorme com toda a profundidade do quarteirão, de terra batida, a praça central, com um poste de iluminação em madeira no centro, apenas uma lâmpada, tão fraca que era apelidada de tomatinho; o Banco do Fukuoka; a farmácia do sr. Maurinho, que morava nos fundos, seu dog alemão assustava latindo forte quando as pessoas passavam em frente ao portão de frente para a rua; seguia uma loja não sei de que, que não tinha portas metálicas de enrolar para comércio, (descobri há pouco que este é o nome que se dá àquelas portas que gostava de fechar na loja de móveis do meu pai. Chamávamos de porta de correr), apenas uma porta estreita de madeira com cortina que, quando aberta mostrava um biombo interno que impedia de se ver o interior. O restante da frente, fechada com alvenaria. Ela me assustava. Não perguntava a ninguém o que era. No íntimo chamava-a de Foi Mais Um porque era o que diziam quando alguém entrava lá. Depois dela vinha o escritório de contabilidade do Sr. Vaz, em seguida a papelaria do Munheca.
Deste lado da rua, um terreno vazio com um mastro alto e um alto-falante na ponta. A estação de rádio local, que “falava para o éter”, transmitia toda a programação por ele, até as dezenove horas. Dezoito horas era especial. Hora da Ave Maria. As casas de comércio faziam publicidade na rádio. Gostava de escutar e apreciava a criatividade do locutor divulgando os pontos fortes dos estabelecimentos. Meu pai acordava as seis horas e ligava o rádio para ouvir, orgulhoso, a publicidade da loja de móveis. Por vezes, eu ficava confuso. A loja de tecidos do senhor Hélio tinha as melhores padronagens da região, dizia o locutor. Quase em seguida dizia que a Casas Pernambucanas tinha os melhores tecidos da região. Quem era melhor, afinal? Isto é propaganda afirmavam. Vá a via! respondia, expressão que ouvia do italiano vizinho, com muita frequência e que gostava de aplicar sempre com um movimento largo, de baixo para cima, do braço direito, imitando-o e achando que, com isto, consentia com a explicação dada. Levei um tempo para entender o real significado desta expressão e compreender por que os interlocutores sempre me olhavam com ar de indignação quando a pronunciava.
Embora ficasse atento, não ouvia a estação de rádio falar da Foi Mais Um.
O rádio era minha conexão com particularidades do município, notícias da região e um pouco do país e do mundo. Passava muito tempo na rua, brincando com os meninos e ficava atento ao alto-falante do poste. Um dia estava cortando o cabelo com o Bernardo e ele, enfurecido, falava que na Inglaterra surgiram quatro cabeludos que tocavam e cantavam músicas barulhentas. Cabeludos! Se a moda pega ... ! Voltando para casa ouvi um som diferente no alto- falante, muito bom. Uma música genial. Corri, liguei o rádio e curti os Fab Four pela primeira vez. Em outra ocasião, por volta de 16 horas ouvi que tinham atirado no Presidente Kennedy.
Em seguida vinha o bar e restaurante do Donato, local alegre e com concentração de apreciadores dos destilados nos finais de dia. Interessante como dali surgiam remédios caseiros para todo tipo de doença. Calibrina com ipê roxo para combater o câncer. Conhaque com quinino para curar a febre amarela, maleita naquela época (e curava mesmo). “Uma cachaça pro santo”, que consistia em jogar no chão uma pequena porção e oferecer ao santo para obter proteção plena. Dizem que este hábito vem dos gregos e romanos e foi trazido pelos portugueses para o Brasil. Alho, mel, limão e bagaceira para curar a gripe. Banha de porco derretida em um copo de café para curar bebedeira. Arre! Noz moscada para curar labirintite, zumbido no ouvido, insônia. Sempre alguém recomendando misturar ou curtir com alguma aguardente, cachaça e conhaque eram as estrelas.
Em seguida, vinha a loja de móveis do papai, “a melhor e mais completa da cidade”. Morávamos em uma habitação de tábua, nos fundos. Minha mãe labutava muito para criar os cinco filhos. Eu e mais dois irmãos nascemos ali. Outros dois mais velhos nasceram em outra localidade da região.
Seguia o bar do senhor Katayuki, onde pai, mãe e três filhos batalhavam. Aos sábados de manhã, o bar lotava com os sitiantes que vinham, em carroceria de caminhão, fazer compras e ali lanchavam, comiam doces e tomavam sorvete de groselha, aquele que você sugava e ficava o gelo no palito. Mais abaixo, Armando, o corretor de imóveis.
Neste ambiente, meu limitado território, passava a maior parte do tempo, ouvindo as conversas dos adultos, brincando e brigando com outros meninos da vizinhança, principalmente no terrão central. Ah! Esqueci de dizer. Mais tarde, soube que os adultos azucrinavam o prefeito chamando desta forma a tal praça central, que nunca evoluía além do terrão com o poste central. Teve um candidato a prefeito que fez toda a campanha com uma só promessa, criar ali uma praça arborizada, com bancos para se sentar e uma fonte luminosa no centro. Ganhou a eleição com grande margem de votos. E cumpriu. A nova praça mudou os costumes dos moradores. Idosos usavam durante o dia para conversar, jogar dama e trilha. À noite, adolescentes e famílias frequentavam o local e se deliciavam com a pequena fonte luminosa que mudava três vezes os jatos de água e as cores. Era o máximo.
Os amigos também não falavam nada da Foi Mais Um. Via um ou dois entrarem e, em poucos minutos, saiam. Nada mais. Pensava que deveriam falar Entram e Saem e não Foi Mais Um.
Num sábado, uma senhora desceu da cabine do caminhão dos sitiantes e entrou na Foi Mais Um. Depois de alguns minutos saiu chorando e entrou na cabine de novo. Nem foi ao bar do senhor Katayuki. Fiquei mais assustado ainda depois daquilo. Entram e Saem Chorando!
Noutro dia, estava na calçada em frente à loja mais completa da cidade e vi um homem magro, oriental, de roupas largas, caminhando do outro lado da rua, na altura do banco do Sr. Darci. De longe, vi que tinha um estranho caminhar. Carregava no ombro uma mochila marrom com a alça comprida, quase arrastando no chão, surrada, como sua roupa. A cada três passos o corpo todo estremecia, a cabeça balançava e ele continuava descendo a rua. Assustador. Praça central ... tremia ... banco do Fukuoka ... tremia ... farmácia do Sr. Maurinho ... tremia ... Eu nem respirava. Com certeza vai entrar na Foi Mais Um. Fechei os olhos, abri, tremia ... não entrou ... tremia ... escritório do senhor Vaz ... tremia ... papelaria ... entrou. Saiu ... tremia ... pareceu que sorria ... tremia ... e continuou descendo a rua, levando sua incurável distonia.
Lembro-me de uma ocasião em que a praça estava movimentada, entusiasmada. A seleção brasileira de futebol tinha vencido a da França por 5 a 2. Não sei o que estava me entretendo naqueles dias. Não ouvi nada sobre futebol no alto-falante do mastro. Aliás, nem sabia que era a Copa do Mundo. E agora, diziam que tinha um jogo final com a Suécia e pediram para dizer qual seria o resultado, para um bolão. Falei 5 a 2. Gastei todo o dinheiro que ganhei em doces de banana, marmelada e refrigerantes sentado na mesa do bar do Katayuki. Sozinho, não dividi com ninguém.
Ao sair do bar vi o que tremia do outro lado da rua, passando em frente à Foi Mais Um e novamente não entrou. Assustado corri para a loja de móveis. Ouvi alguém dizer que ele era surdo-mudo e vinha de uma localidade vizinha aparecendo ali de vez em quando. Percebi que falavam dele com certo carinho.
Passado um tempo, estava em frente à loja e vi o Toninho, era o nome dele, me disseram, vindo pelo meu lado da rua. Loja de tecido do Sr. Faiçal...tremia...atravessou a rua...tremia...terreno do alto-falante ... tremia ... bar do Donato ... tremíamos ... Pulei no colo do papai e escondi o rosto no seu ombro. Tentava me acalmar, que o Toninho era gente boa, que gostava de criança, que era um artista, que queria me dar um presente. Virei a cabeça e o Toninho estava me entregando ... tremíamos ... um origami ... tremia ... sorria ... um pássaro...tremia...sorríamos. Desci do colo peguei o pássaro e corri para mostrar para minha mãe e para quem encontrasse. Dormi com o pássaro em minhas mãos várias noites. Andava com ele prá lá e prá cá.
Na vez seguinte que ele veio, cruzei a rua, acompanhei-o na caminhada, passamos em frente à Foi Mais Um me sentindo corajoso. Ganhei outro origami. Entramos na papelaria do Munheca. O Toninho recebeu uma boa quantidade de folhas de papel e uma tesoura nova. Saiu feliz. Ali era o meu limite. Voltei.
Passou a ser um hábito acompanhar o Toninho nas andanças por minha área. Pensava que depois do Munheca tinha outro menino ou menina, que ganhava origami e que gostava de caminhar com ele.
Nunca entendi por que outros moleques, que ganhavam pássaros do Toninho, não me faziam concorrência nesta aproximação. Percebia que eles ficavam assustados. Eu não tinha nenhum interesse em alterar esta situação. O cão da farmácia não latia para mim quando estava com o Toninho. Os cachorros nunca latiam para ele. Quando se aproximavam ele fazia gestos, contidos e amigáveis. Alguns vira-latas abanavam os rabos, outros se sentavam e transmitiam tranquilidade.
Os adultos e a maioria das crianças não maltratavam o Toninho. Os pais ensinavam a respeitá-lo. Ele gozava de prestígio por aquelas paragens. Não demonstrava insatisfação com ninguém, sejam os que mantinham distância ou os que se aproximavam. Tinha confiança extrema na arte que desenvolvia, na felicidade que provocava e isto bastava.
***
O Joel trabalhava no galpão atrás da loja, envernizando e lustrando móveis, colocando puxadores nas gavetas e portas. Nunca o vi triste, reclamar de alguma coisa, falar de problemas pessoais, sempre sorrindo, conversava com todo mundo, não era curioso para buscar saber sobre atribulações dos interlocutores, se as contavam procurava levar a conversa para os ensinamentos que recebia do pastor da igreja mencionando praxes para enfrentar problemas, não se alongava, de modo a não se tornar um chato. Nunca soube de nenhum inimigo declarado ou alguém que não gostasse do Joel.
Bem, os laterais esquerdos dos times de futebol da região não gostavam dele durante as partidas. Na época os defensores guardavam posição, não saiam para apoiar o ataque como hoje e quando lá vinha o Joel pela ponta direita, desembestado, preparavam-se, não era fácil tomar a bola dele. Passava e cruzava para a área. O Joel, baixinho, com bom domínio de bola e bom drible era rápido na corrida e cumpria a função muito bem no time de futebol. Foi o ponta direita durante vários anos, no auge da equipe, que conquistou alguns campeonatos regionais.
Trabalhando, cantava o tempo todo, ensaiando. Pois é, o Joel também era o crooner, da orquestra da cidade, tipo "big band", que fazia muito sucesso na época. Três atividades que exigiam dedicação de tempo e disciplina. Eclético. Raro hoje em dia.
O Joel se dava muito bem com o Toninho. Sempre que passava em frente à loja, ele se dirigia até o galpão dos fundos. O lustrador o recebia efusivamente e começava a cantar. O visitante se sentava no chão e era clara a satisfação dele. Aparentemente se deliciando com a música. Eram as gravações do Orlando Silva, do Nelson Gonçalves e outros cantores famosos da época. Como, se ele era totalmente surdo? Achava que apreciava a coreografia do Joel, que levantava e abaixava os braços, com entonação grave. Poucos anos mais tarde, quando chegou o sinal de televisão, vi que o Joel copiava os gestos dos famosos, principalmente do Nelson Gonçalves.
E o mais interessante é que o Toninho não tremia quando ele cantava. Ficava sem entender. Surdo completamente e não tremia! Bem, o Nelson, gago, não gaguejava quando cantava! Como o surdo podia apreciar música?
Não sabia que a ciência havia comprovado a capacidade de deficientes auditivos poderem apreciar a música do mesmo modo que os sem a deficiência. Surdos compõem músicas. Está provado que eles sentem, na mesma região dos cérebros dos não deficientes, as vibrações da música. Os efeitos são muito parecidos, quando as vibrações entram pelas mãos, pés e mesmo pelo abdômen, quiçá o corpo todo, e vão para o cérebro. A apreciação da musicalidade pelo ser humano, independe da audição.
Há alguns anos, presenciei a palestra de um maestro brasileiro que discorreu sobre a vida de Beethoven. Marcada por muitos dramas pessoais. Pai alcóolatra, de sete irmãos cinco morreram na infância, perdeu a mãe aos dezessete anos, aos vinte seis anos de idade, morando em Viena, surgiram os primeiros sintomas que o levaram à trágica surdez. Talento incomparável para a música, pianista reconhecidamente virtuoso, buscou médicos e meios para ouvir. O maestro contou que Beethoven continuou compondo, utilizando a memória e fazendo adaptações em instrumentos musicais, por exemplo, retirando as pernas do piano, de modo que, sentado no chão, se tornasse possível reconhecer as notas musicais através das vibrações.
Visitando o sobrado onde nasceu, em Bonn, atualmente Alemanha, impressiona a quantidade e diversidade de cornetas auditivas que o compositor clássico pagou para serem construídas, esperando, inutilmente, que elas o fizessem ouvir. Inesquecível poder olhar os instrumentos musicais, ainda rústicos, onde compunha, o piano com teclas bastante desgastadas e emocionante sentar-se no chão, piano ao lado, por um minuto.
***
Em época de eleição, seja municipal, estadual ou presidencial, os assuntos políticos recrudesciam. Gostava destas épocas. Os jingles, candidatos a vereador e deputados visitavam o município, que não tinha nem ruas asfaltadas. Discursavam sobre caixas, tambores. Prometiam de tudo e para cada um dos moradores. Tem aquela anedota, repetida muitas vezes, que o político dava um par de sapatos ao eleitor, sendo um pé antes da eleição e o outro depois, se fosse eleito.
Políticos famosos passaram pela região. Seguiam de loja em loja. Entravam, prometiam, tomavam café, abraçavam e beijavam os pequeninos. Nunca entravam na Foi Mais Um. O cachorro da farmácia latia forte quando passavam. Quando viam o Toninho, não se aproximavam, até se desviavam. Ele não se importava. Prestava atenção no que estava acontecendo. Parecia que não precisava das promessas deles. Bastavam as doações que recebia do povo e que garantiam o sustento.
Certa ocasião, um candidato a presidência da república nos visitou. Era amigo do médico. Foi um acontecimento. Chegou à praça central de carro e discursou. Toda a pequena população estava ali. Foi muito aplaudido. Não ouvi vaias. Ouvi comentários de alguns dizendo que votariam em outro candidato.
Os jingles passavam a fazer parte do dia a dia. Um que roubava, contudo fazia, diziam. ”Desta vez, vamos com o doutor...”, repetido várias vezes. Outro era militar, ex-ministro, representante do governo vigente. “De Leste a Oeste/ De Sul a Norte/ Na terra brasileira/ É uma bandeira / O Marechal ...”. Estes não vieram. O que visitou: “Varre, Varre, vassourinha/Varre, varre a bandalheira/ Que o povo está cansado / De sofrer desta maneira/ O doutor...é esperança/Desse povo abandonado”. Combatia a corrupção e o símbolo da campanha era a vassoura.
Contam que aquele do “rouba, mas faz”, quando governador, flagrou um assessor em caso de recebimento de propina. Chamou-o ao gabinete, exigiu que lhe entregasse aquela molhadela, não o demitiu, passou-lhe uma reprimenda e deixou claro que não tinha nível para tais interesses. Que se colocasse no seu lugar. Assunto encerrado. Era para poucos, naquela época.
O candidato foi almoçar na residência do médico, caminhando. A população o seguindo. Chegando lá, sentou-se na sarjeta, ajustou os óculos pretos, tirou um sanduiche do bolso do paletó, ofereceu a todos, e o comeu ali mesmo. O povo aplaudiu. Eu idem.
Foi quando vi o Toninho a uma certa distância. Não aplaudia e parecia não estar apreciando. Meneou a cabeça, aparentemente reprovando, virou-se e caminhou distanciando-se. Continuei ali, admirando: um candidato a presidente na minha frente!
Mais tarde, com a calma habitual restabelecida, brincava com um menino vizinho quando vi o cabo da polícia e mais dois indivíduos entrarem apressados na Foi Mais Um.
Fiquei intrigado.
Curioso, resolvi sair do meu território, junto com meu vizinho, e nos aventuramos para a rua detrás, pelo terrão central. O terreno atrás da Foi Mais Um era vazio e pude ver que, com a ajuda do cabo, colocaram um caixão de madeira envernizado em uma camionete e partiram rapidamente. Soube que encontraram o Toninho caído num canto da estação ferroviária com um pássaro de papel na mão. Ataque cardíaco, disse o médico. Jeito triste de saber o que era a Foi Mais Um. Foi-se o Toninho. Parou de tremer.
A prefeitura encarregou-se de levar o corpo até o povoado vizinho. O chefe da estação de trem sabia de onde ele vinha e que lá tinha uma irmã solteira, empregada doméstica e que cuidava dele quando aparecia.
Uma ocasião, adolescente, passei por esta pequena cidade e procurei saber dele e da irmã. Não souberam informar. Não voltei mais lá.
***
Não gostava de funerária. A Foi Mais Um passou a receber caixões mais bem acabados, de luxo. Com isto, abriu a frente da loja, colocou vidros e expunha os caixões no fundo. Não gostava de andar na frente. Passou a fazer propaganda no rádio. O locutor, com voz grave dizia que devíamos lembrar da Funerária Santo Antônio quando alguém tinha que ir para a última morada. Era um tipo de publicidade que me deixava inquieto e não via nexo naquilo. Não gostava de cemitério. Ficava pensando e imaginando o que acontecia com os defuntos enterrados naqueles caixões. Além do que, existiam os relatos sobre acontecimentos ali, à meia noite!
Até então, não tinha medo da morte. Tinha curiosidade, queria entender. Morreu vai para o céu ou para o inferno, era o que dizia a dona Eugênia nas aulas de catecismo. Não achava que um familiar iria morrer. Isto era para os outros. Sentia falta de alguns que faleciam.
Um menino da turminha caiu de boa altura ao escalar uma árvore. Não estava eu com o grupo naquela hora. Ficou dois ou três dias acamado em sua residência, assistido pelo médico, passando mal, sangrando pela boca e nariz e não resistiu.
Primeira vez que tive gente próxima morta. Vi os pais e irmãos apreensivos, desesperados.
Mais do que assustado ou preocupado, estava curioso. Ele morava próximo de mim, em rua transversal. Muita gente na frente da residência todo o tempo. Eu circulava, interessado nos comentários. O que era hemorragia?
Senti falta dele na convivência com a turminha.
Um menino, filho do dono de um bar, de mesma idade que eu, me chamava a atenção porque tinha os lábios roxos. Afogou-se no rio Paraná e o corpo foi encontrado boiando rio abaixo, dois dias depois. Comoção geral.
Outro caso foi o do “seo” Vieira, com mais de noventa anos, estava nas últimas e pediu para a família colocá-lo no quarto da frente, voltado para rua, com a janela aberta.
Queria morrer olhando para fora, gente, árvores, pássaros o que fosse que surgisse no vão da janela. Abriram a janela para a morte e, pela última vez, sentiu o prazer da vida. Fui até lá, queria ver o “seo” Vieira morrer. Queria entender como se morre. Curiosos chegavam até a janela olhavam para o moribundo e falavam, rezavam, alguns choravam. Colocaram, do lado de fora, um pequeno caixote de modo que até as crianças podiam se posicionar na beira da janela e olhar para o moribundo. Não havia restrição. Subi no caixote e o vi com os olhos entreabertos, agonizando e creio que ouvi o último suspiro. Saí dali normalmente, de certa forma assustado e, por outro lado, recompensado porque entendi como acontecia. Hoje, não consigo atinar como pude passar por aquilo com tranquilidade.
***
No final do primário, uma professora dividiu a turma em grupos de dois e propôs que cada grupo entrevistasse algum profissional: comerciante, alfaiate, bancário, escriturário, motorista, qualquer profissão. Gostava muito deste tipo de trabalho escolar. Os grupos trouxeram entrevistas interessantes. Mais a frente, direi quem, o Rafael e eu escolhemos para entrevistar. Tentem adivinhar.
Um grupo conversou com o Joel, trazendo detalhes da profissão de lustrador de móveis, de cantor e da paixão pelo futebol, pela função de ponta-direita, de servir os atacantes centralizados na área adversária. Outro grupo entrevistou o dentista, sobre a formação profissional e as atividades práticas, com ênfase no medo do motorzinho. O grupo do filho do prefeito entrevistou o alcaide. Interessante que ele e seu concorrente, na última eleição, empataram no número de votos. Cerca de 1200 votos cada. O critério de desempate foi a idade. Venceu o mais velho.
O Rafael, parceiro neste trabalho, queria porque queria entrevistar um charreteiro.
Não topei de forma nenhuma. Tive que explicar minhas razões.
Mesmo existindo automóveis usados como taxi, as ximbicas, as charretes eram ainda usadas para transportar gente por ali.
Acontece, que todo dia, por volta das dezesseis horas, a dona da casa de tolerância, descia a avenida principal, em um vestido volumoso de filó, em uma charrete, Ocasionalmente, com outra moça, a novidade do mês. Era o marketing do negócio, palavra esta que não se falava na região ainda e que começava a se popularizar no país. A charrete era conhecida como “balaio das putas”. Já tinha noção do que significava. O Rafael confidenciou que era um dos motivos pelo qual queria entrevistar um charreteiro. Tinha dois anos a mais que eu.
Certa feita, fui receber uma tia na estação ferroviária e só havia ali charretes, naquele momento. Contratou o veículo, queria que subisse e fosse junto. Nem morto. Ela desceu a rua principal e fui acompanhando pela calçada como se não a conhecesse. Receava que os amigos me vissem no “balaio”.
Rafael queria fazer algo diferente e impactante. Argumentava que teria problema em minha casa, que a professora não aceitaria esta apresentação e que nos mandaria para a diretoria, se insistíssemos. Ao citar a diretoria, balançou. Conhecia muito bem a rigidez do diretor da escola. Estivera sob sua austeridade algumas vezes. A mãe era chamada e lá vinha punições. Por uma semana, sem futebol, sem brincar na rua, sem o clube de natação, sem caçar passarinho, estilingue confiscado.
Não arredava pé. Queria fazer a entrevista e depois acharia uma forma de camuflar detalhes da profissão das moças, que era o interesse maior. Eu continuava preocupado. Não podia pedir para fazer o trabalho com outro aluno. A professora havia escolhido as duplas. Resolvi apelar. Lembrei as punições da mãe, ponderei que neste caso, ela seria mais rigorosa. Nada disto o demovia.
Pensava em como poderíamos ter algo impactante. Estava beirando o desespero.
Dia seguinte, o Rafael chegou cabisbaixo, contrariado, e avisou que não iríamos entrevistar o charreteiro.
Explicou que havia comentado com seu tio, policial, sobre a impactante entrevista que iríamos fazer e seus objetivos. De imediato, levou um sopapo do tio que deixou bem claro que não tinha idade para isso.
Rafael não entendeu bem, pois desconfiava que o tio frequentava a zona. Não pode dizer nada, a não ser que não faria, que não falasse para os pais e saiu de fininho.
Fiquei aliviado. Foi quando tive a ideia de entrevistar o agente funerário. Seria diferente e impactante.
O colega era de topar quase tudo, sem medo. Aceitou na hora e de cara disse que entraria na sala de aula dentro de um caixão de defunto, carregado por alguns empregados do seu pai. Pô, o cara só queria causar. Difícil, porém o convenci a esquecer esta ideia. Tínhamos que preparar apresentação cuidadosa. Nossos colegas ficariam assustados com o tema. Teríamos que convencer o professor que faríamos uma apresentação respeitosa.
Entrei em um estado de ansiedade. Nunca tinha conversado com o senhor Miranda. A filha dele tinha minha idade, estudava em outra classe, era alegre, conversadeira, nosso contato era esporádico e eu era arredio, como outros, porque ela “era da funerária”. Estava no grupo dos melhores alunos da escola.
O estereótipo do agente funerário nos filmes do velho oeste era aquele indivíduo magro, alto, vestido todo de preto, com cara de abutre. Desrespeito total aos mortos. Pelo menos era assim que os via. Max Von Sydow, maquiado e no papel de agente funerário seria o máximo.
O senhor Miranda era baixo, gordo sem exagero, careca, com cara de bonachão.
Ficamos sabendo que tinha sido alfaiate em outro município, não tão próximo, há vários anos.
Veio, pela primeira vez, à minha cidade para o enterro de um tio.
A funerária ficava na localidade vizinha. Um parente teve que se deslocar até lá para acertar tudo para o enterro. Foi uma confusão. O caixão demorou para chegar. O defunto mal cabia na urna. O enterro atrasou, o padre ficou nervoso porque tinha outros compromissos. O agente funerário fazia da forma como ele queria. Os familiares ficaram muito irritados.
Bem, o senhor Miranda voltou para sua cidade e ficou pensando se deveria deixar de fazer terno de pano e passar a vender terno de madeira (Orra meu! que menção terrível esta! é o que me diria, com certeza, um amigo da Mooca).
Ficou um tempo observando e se informando sobre o trabalho de agente funerário. Recebeu aprendizado do agente de onde residia, muito prestativo e fantástico segundo o senhor Miranda.
Resultou que se mudou para minha cidade e abriu a Foi Mais Um. Precisava de crédito. Foi até o gerente Fukuoka, que enxergou a necessidade e comodidade de se ter uma funerária no município e lhe concedeu crédito nas melhores condições que pode.
O senhor Miranda foi muito prestativo e didático. A entrevista foi tão marcante que até hoje guardo muitos detalhes da conversa que tivemos. Aprendemos que o agente funerário organiza os funerais, após a liberação do corpo mediante documentos necessários, providencia remoção e traslado de cadáveres.
Executa preparativos para velórios, sepultamentos e conduz o cortejo fúnebre. Prepara cadáveres em urnas e as ornamentam. Executa a conservação de cadáveres, higienização, substituindo fluidos naturais por líquidos conservantes. Aplica maquiagem nos cadáveres com cosméticos específicos. Organiza urnas, ornamenta salas de velório, presta serviço aos familiares.
Para ser competente tem que transmitir confiança, ser paciente, ouvir mais do que falar, ser discreto, ter boa postura, evitar preconceitos religiosos, não se envolver emocionalmente, ser ético, manter sigilo, gostar do que faz.
Defendeu que a profissão que exercia era muito bonita, sentia-se muito bem com ela. Sabia que tais agentes eram apelidados de Urubus. Nunca o chamaram desse modo. Reconhecia que o povo não entendia como podia sentir prazer nesta profissão. Argumentou que a satisfação vinha, principalmente, pelo reconhecimento dos enlutados pelo bom trabalho que executava e pelo respeito que tinha pelo defunto quando o preparava. Tinha que atender os desejos dos familiares e não fazer diferente, como adotar soluções a seu gosto, por exemplo. Transmitir que estava ali para apoiar, para ajudar a levar a bom termo até o fim do sepultamento. Não se envolvia emocionalmente, não dava condolências, tratava profissionalmente, entendia que os familiares estavam sofrendo e qualquer deslize de sua parte poderia alterar o comportamento deles, deixá-los nervosos.
Raramente cometia alguma imprudência. Caso ocorresse, com calma resolvia tudo, sempre com muito respeito ao morto e aos familiares.
Pela experiência adquirida, disse que não tinha medo da morte. Não conseguia não se emocionar em ocorrências, principalmente não naturais, com os de pouca idade e jovens.
Economicamente, o negócio ia bem. Faturava mais que o dobro da profissão anterior de alfaiate.
As urnas ainda eram fabricadas em outro local da região. Planejava encontrar uma forma de fabricá-las nas proximidades.
A família era composta pela esposa mais a filha que mencionei e um filho menor. É verdade que trabalhava sob certa pressão, exposto a produtos químicos e bactérias. Disse que era cuidadoso quanto a isso e que a cachacinha no final do dia auxiliava na imunização.
A filha presenciou todo o tempo da entrevista e pude observar que lidava bem com aquela situação, demonstrando orgulho pelo ofício do pai, pois considerava de grande importância o trabalho realizado para a comunidade em momentos difíceis.
Ao nos despedirmos, me disse que sabia da minha proximidade com o Toninho e apreciava. Gostava de acompanhar minha caminhada com ele, da janela. De quando em vez, saia para receber um origami. Mencionou que em outros “territórios” ele era acompanhado por um ou outro menino ou menina de idades maiores que a minha, embora sem muita assiduidade e que muita gente sabia da minha proximidade com o artista.
A Fernanda, este era o nome dela, tinha se tornado médica de renome, atuando na capital.
Saímos de lá muito satisfeitos com os resultados da entrevista e com a convicção de que não era uma profissão para nós.
Na escola, fomos bem na apresentação. Pode se dizer que o Rafael se comportou.
As reações dos colegas foram diversas. De início, manifestações de querer sair da sala antes de começar a apresentação, de apreensão com este tema, até de medo. Fiquei sabendo, mais tarde, que o Rafael andou assustando alguns alunos com a menção de que entraria na sala de aula dentro do caixão de defunto, maquiado como morto. O que não ocorreu.
Outros demonstraram curiosidade e ansiedade sobre o que tínhamos conseguido.
A professora não liberou ninguém e, aos poucos os alunos foram relaxando, se acalmando, muito em razão da presença de espírito do parceiro que encontrava colocações divertidas e, pasmem, respeitosas para as situações de maior temor geral. No final, comunicou, ironicamente, que a próxima entrevista seria com o coveiro.
Foi assunto de algumas semanas na escola toda. Apreciamos nosso curto período de fama.
Outras apresentações foram, do mesmo modo, interessantes. Uma delas, bem engraçada foi com o projetista de filmes no cinema, que tinha como ídolo o Charles Chaplin. Sabia de cor e salteado cenas e falas deste artista, ator e diretor. O colega Benjamin fez a apresentação na classe, mais ou menos caracterizado como o Chaplin, de bigode, calça larga, chapéu e andando como ele. Foi hilário, além de entendermos os cuidados que o projetista dos filmes tinha que ter com os caros equipamentos que manuseava e o caro celuloide que tinha em mãos. Estilo visto no filme Cinema Paradiso. O Benjamin se tornou ator de teatro, com relativo sucesso e morreu novo, parada cardíaca, quando fazia parte de uma turnê pelo Norte, no final da década de 90. Estava empolgado com esta viagem. Adotou o jargão “para Vigo me voy” do filme Bye, bye Brasil do Cacá Diegues. Vivia repetindo.
O Rafael, dois ou três anos depois desenhava cenas eróticas e dizia que ia competir com o Zéfiro. Omitia o primeiro nome, Carlos. Para os de pouca idade, meninos ou meninas, quando perguntado quem era Zéfiro, disfarçava, explicando que competiria com a personagem mitológica que representava o vento que sopra do ocidente. Iria viajar mais do que este vento viaja. Era bom desenhista. Não tenho notícia se desenvolveu este negócio. Sei que se tornou um jornalista de renome, viajando do Oiapoque ao Chuí, escrevendo longas reportagens sobre lugares por onde passava e até habitava por algum tempo: aldeias indígenas, minas de ferro, seca no nordeste, pequenos empreendedores nos sertões nordestinos, personagens criativas, vinícolas no sul, pantanal mato-grossense, dificuldades do trabalho nas minas de carvão em Santa Catarina e coisa e tal.
Voltando ao ambiente escolar, final do primário, novamente trabalho em grupo.
O professor dividiu a classe em três grupos, cada grupo com doze a treze alunos e passou os temas. Se cada grupo fosse uma comunidade e se não existisse: grupo a) a moeda ou dinheiro; grupo b) a energia elétrica e grupo c) o telefone. Como seria viver desse jeito, como comercializar, como sobreviver. Podíamos inventar o que fosse.
Os três grupos fizeram trabalhos brilhantes. O meu, misto, meninos e meninas, ficou com o tema sobre a moeda. A confusão foi grande. Resumo.
No início, cada um queria comprar pagando com coisas que julgavam de valor e que era fácil encontrar: caroços de mamona, goiabas, pedras diversas, bolas de gude, ramonas, tiaras e outros. Muita confusão, pouco interesse nas trocas de mercadorias em receber os “dinheiros” que traziam. Levei um dos origamis, comprometido comigo mesmo que somente concordaria em colocá-lo nas trocas se aceitassem um valor muito elevado. Aprendi que valor sentimental, geralmente, não conta para valor econômico.
Aos poucos as necessidades físicas, econômicas e até psicológicas foram se ajustando, escolhidas as bolinhas de gude como moeda, maior bola maior valor e as tiaras, um valor para cada cor. E a convivência e sobrevivência da comunidade passou a ser primária, entretanto, razoável. Entendo que foram soluções evolutivas. Não demorou muito alguns poucos acumularam mais dinheiro. Outros, empreendedores, sem dinheiro, queriam fabricar pão (comprariam na padaria e trariam no dia seguinte), fabricar toalhas (pediriam emprestadas para as mães), por exemplo. Os que acumularam capital financeiro emprestavam o dinheiro com o compromisso de receberam o emprestado e mais um pouco no dia seguinte. Surgiu ali o crédito e o juro. Transações baseadas na confiança.
O grupo “sem energia elétrica” passou a atividades manuais e mecânicas, com forte viés criativo, conquanto soluções involutivas. O mesmo com o grupo “sem telefone”.
Ao final, aprendemos sobre a criação da moeda, da descoberta e importância da energia elétrica e do telefone.
E, creio, disparado o mais importante vem a seguir. Nos três temas ficou evidente que as soluções sugeridas ou encontradas tinham como base a confiança. A aceitação, a implantação das soluções necessitava que houvesse confiança entre as pessoas e nos procedimentos adotados, fator por demais relevante na evolução da humanidade e no desenvolvimento de relações positivas.
Confiança não vem das conversas em si. Vem da percepção das atitudes, do olho no olho, nos movimentos do corpo e sei lá mais o que. Vem daquilo que os cientistas ainda não conseguem explicar quais sejam os processos físicos ou químicos envolvidos e nem se estão envolvidos: a consciência humana. O Toninho não falava, não ouvia, mas adquiria e transmitia confiança.
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Quase sessenta anos depois, lembro-me muito bem como era o Toninho, feição, sorriso, olhar desconfiado, tristeza, o caminhar tremebundo. Longe de ser um Viramundo.
A lembrança me vem como um filme. Acho isto estranho ou talvez, formidável.
Houve aqueles que conviveram comigo mais intensamente, colegas de escola, de cinema, de futebol, de viagens, de polêmicas e que não me vem à lembrança os rostos, aparência, tom de voz, trejeitos. Lembro de alguma situação com um deles e a fisionomia é uma incógnita.
Penso num quadro impressionista onde os sujeitos dos últimos planos têm faces apenas delineadas, sem nenhum detalhe. Ou mesmo aqueles do primeiro plano como em La rue Mosnier con losadores (A Rua Mosnier com pavimentadores) de Manet. Ou como no episódio USS Callister de Black Mirror quando o capitão Daly, comandante da nave virtual que criou, pune a subalterna, a Tenente Cole, deixando-a sem rosto. Não me refiro aqui ao explicável terror que isto provocou nela, senão a estranheza que me causa uma pessoa sem rosto.
O que esperar de alguém de rosto “escondido”? Vem de onde? Vai fazer o quê, vai para onde? Vai dizer o quê? Pensa o quê? Não vejo sorriso, palidez, entusiasmo, decepções, alegrias, discordâncias. Seria um tipo razoável? Ponto chave: posso confiar?
O Toninho era surdo-mudo, porém, tinha um rosto. Era de poucos gestos. E tinha face completa, expressões marcantes, confiável, sabia demonstrar contentamento, preocupações, necessidades. E me transmitia sabedoria, ágil com a tesoura, que transformava um pedaço de papel em peça sublime.
Leigo, entendi que cientistas e neurologistas explicam que nossa mente armazena padrões de reconhecimento para tudo. No caso de pessoas queridas ou que marcaram fortemente nossas vidas, os respectivos rostos estão armazenados milhares de vezes em nosso cérebro, redundantemente. Rostos mais recentes ou que não nos impactaram são armazenados apenas algumas vezes. Temos mais capacidade de “passar um filme” com as imagens que têm maior número de redundâncias.
Reflito sobre que influência teve a proximidade com o Toninho desde o final da minha primeira infância e mais alguns anos a seguir. Não posso dizer que convivemos. Não posso afirmar que fomos amigos. Vinha esporadicamente. Nunca ouvi nenhum som dele, nem um grunhido. Nem um Ai! Nenhum Oi! Como se instruía e se informava? Apenas caminhávamos lado a lado. Obviamente aconteciam coisas agradáveis e outras nem tanto, nestas andanças. Parava para fazer e presentear os origamis, para ouvir o Joel cantar e ali ficava mais de meia hora entretido.
Joel foi o único que vi o Toninho abraçar ao se despedir. Parava para receber doações de alimentos ou mesmo dinheiro. Os gestos de agradecimento eram os orientais. Era paciente, sereno.
Não raro, alguma criança dirigia alguma malvadeza a ele. Quando o imitavam, caminhando e tremendo, ele passava a imitar os trejeitos do brincalhão, sorrindo e convidando-o a se aproximar, com um origami na mão. Relutavam, alguns vinham, normalmente as meninas. Uns poucos meninos mostravam a língua ou alguma careta e fugiam, se sentindo machos.
Certa vez, um garoto jogou nele uma pequena pedra, que acertou sua perna levemente. Ele pegou a pedra, juntou um origami e fez um gesto para eu entregar ao mal-educado. Relutei porque tinha medo deste garoto. Tinha fama de mau. Fui me acercando dele e quando estava perto joguei os dois objetos aos pés dele e corri de volta.
O malvado pegou a pedra, jogou em mim, não me acertou, pegou o origami, rasgou e saiu correndo, gargalhando, em direção à turminha.
O artista estava acostumado com estas reações. Não se alterava. Calmamente caminhou, catou a pedra e os fragmentos do origami e os jogou na primeira lata de lixo que encontrou.
Isto me faz recordar que, mais tarde, época de colégio, havia um menino da minha classe que todo dia dizia que ia me dar uma surra na saída. Hoje seria o bullying. Na época, não era costume recorrer à direção do colégio denunciando a situação. Alguns colegas diziam para não dar ouvidos, pois, o provocador não era de nada. Era franzino, daria conta dele com uma mão, diziam. Me preocupava o amigo dele. Quem? O mal-educado acima mencionado.
Crescemos e ambos se envolviam em brigas de rua. Nunca estavam me esperando na saída. Se bem que tomava minhas providências para não cruzar com eles ao ir embora do colégio. E, que eu saiba, não juntava ninguém na saída esperando para assistir à luta. No dia seguinte ninguém tocava no assunto. As ameaças não despertavam interesse em ninguém.
Na nossa classe havia um nissei, boa gente, ainda não éramos amigos. Certo dia, perguntou por que não reagia às ameaças. Confidenciei meus receios e ele disse para aceitar porque me acompanharia. Contou que, certa ocasião, envolveu-se em um entrevero com o garoto mau e tinha lhe dado uns tabefes. O Luis praticava judô. Se necessário, cuidaria do franzino e o Luis do maldoso.
Fiz o que ele sugeriu. Aceitei a provocação do dia.
Ao final da aula, Luis e eu saímos rapidamente e nos posicionamos fora do colégio, guardando distância entre nós, esperando o franzino e, provavelmente, o amigo dele. Desta vez, meia dúzia de colegas de classe esperavam no local para ver o que ia acontecer.
O franzino saiu pelo portão principal, onde estávamos. Parou, olhou em volta, aproximou-se, disse que eu era corajoso, que não iria brigar comigo, era só brincadeira. Não entendi bem e respirei, aliviado. O Luis, da mesma forma, relaxou. O mau não apareceu. Fomos embora, cada um para um lado.
No final o Luis se tornou amigo do peito e, pasmem, o franzino nunca mais me perturbou, nos tornamos amigos, com frequência estudávamos juntos, jogávamos futebol na mesma equipe.
Alguns anos depois me confidenciou que sua mãe soube das brigas que ele estava se envolvendo junto com a gang do garoto mau e definiu regras e castigos para o comportamento futuro. Nunca convivi com o menino ruim.
Voltando às minhas reflexões sobre a influência do Toninho. Não éramos amigos, não convivíamos, não conversávamos, não sabia o que ele pensava, nada sabia sobre seus relacionamentos, sabia ler? sabia escrever? parentes? Óbvio que nada disso me preocupava na minha infância. Creio que os gestos e, principalmente, seu olhar em cada situação transmitiam serenidade, paciência, compreensão, alegria, desaprovação, recusa, crença, descrença, vontades, negações, aprovações, enfim, todas as peculiaridades de um ser humano normal. Acho que, por não poder falar e escutar, a expressividade era mais acentuada em cada pormenor. A nossa relação, isto sim, era de total confiança.