NA PAREDE DA MEMÓRIA
A cabeça de gente é das coisas mais complexas que conheço, indo mais fundo me remeto a tal parede da memória que guarda de forma intacta histórias e fatos que às vezes vêem a tona puxada por algum estímulo externo.
Se esse recobrar de lembranças passadas acontece de forma muito forte, desperta então para histórias que não foram contadas ou mesmo esquecidas por motivos os mais diversos possíveis.
Foi depois de assistir o “AINDA ESTOU AQUI”, filme que conseguiu trabalhar um tema dos mais ásperos, com a sutileza de quem domina a arte de fazer cinema com extrema sensibilidade e apreço.
Bom, toda essa introdução serve como pano de fundo para o resgate de uma longa história que exprime com todas as letras o poder desmesurado das forças armadas naquela interminável ditadura, ênfase para membros do exército, que na realidade foram os que mais se refestelaram nos anos de chumbo, marcados por uma sucessão de generais presidindo o país, como se este fosse um adendo da caserna.
Olhavam para a população civil como sendo cidadãos de segunda categoria, já para quem não estivesse de acordo com essas imposições, estes eram gentilmente convidados a deixar o país, já para casos mais graves de insubordinação, o tratamento era o dispensado a inimigo público, sujeito a todo tipo de tortura, que em muitos casos levava ao desaparecimento do corpo da vítima.
Vou relatar a história de um certo coronel Talarico, meu vizinho, e, portanto passível de conhecer de perto seus descalabros cotidianos.
Naquele momento, importar um veículo era considerado forte heresia, aceito exclusivamente para embaixadas ou consulados estrangeiros.
O coronel circulava pelo bairro a bordo de uma Mercedes Bens, ano 1966, que sob o capô carregava um motor seis cilindros com injeção mecânica de 2.5 litros e 130 HPs. Uma caixa manual de quatro velocidades ou automática também de quatro velocidades, mundialmente conhecido pelo estilo atemporal e durabilidade excepcional.
Interessante notar que o roliço militar, que invariavelmente usava um impecável chapéu panamá e óculos ray-ban verde escuro e sempre ocupava o banco traseiro do veículo, pilotava o bólido um soldado destacado especialmente para a missão, que incluía em sua tarefa atender também a rotina de Dona Letícia a primeira dama.
Em casa, esse oficial do exército brasileiro dispunha de dois recrutas, que supostamente serviam a nação, dividindo tarefas domésticas do amplo apartamento do militar, enquanto um respondia pela limpeza e manutenção do imóvel, o outro dava conta das coisas relativas à cozinha.
Se você caro leitor acha isso um exagero de mordomias inerentes ao cargo, fique sabendo que semanalmente uma viatura militar estacionava diante do prédio para descarregar sua cesta básica semanal, que incluía entre outras especiarias duas garrafas de uísque, afinal ninguém é de ferro, ainda mais para quem está na porta de assumir o cargo máximo do exército.
Na época, convivia com muitos amigos de rua filhos de militares, mas não sabia de outro caso com tantas regalias.